A Cruz de Ana Pinta

-Rui Brito Fonseca

Lá para a folha de cima, no caminho que vem da Junça para as Naves, em lugar ermo, implantada na parede, o raro passante dá com uma cruz de homem morto, conhecida também no norte como cruz mocha. Estes singelos marcos pretendem lembrar para a posteridade que ali ocorreu uma morte violenta. A da Junça é a de uma mulher morta.

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Certa ocasião, a caminho do Povo vindo de Além Coa, cruzado o rio pelo Pontão de Manuel José, já estafado pela longa subida e de calcorrear as aldeolas do outro lado, parei junto a essa cruz a modos de descansar e ganhar fôlego. Desci da burra e detive-me a olhar para o que lá tinha escrito, mas para além da data de 1863, o musgo e a pouca luz do curto crepúsculo não me permitiram mais ler. Estava neste desconsolo por não conseguir matar a minha curiosidade, sentando-me um pouco, quando mal dei conta do vulto de alguém que já estava tão próximo que me fez assustar. Não pressentira a sua chegada, talvez pelo meu ouvido já se vir a tornar um pouco duro… Não me deu tempo a nada, e de rompante:

– Vossemecê sabe o que é isso? – Apontando para a pedra coberta de líquenes?

-Não sei catchopa, não sei. – Respondi à rapariga acabada de aparecer nem eu sei donde!

-Pois vou-lhe contar o qu’isso quere dizer. – Não dando tempo a que lhe dissesse que tinha pressa em chegar ao Povo, até porque estava a chegar a hora da ceia.

– Essa pedra está aí para os viandantes não esquecerem do mal que aqui perto se fez e rezarem uma ave-maria pela alma da desgraçada.

Olhava a moça enquanto falava e fazia esforço para saber a quem pertencia. Era uma rapariga com aspecto sadio, com uns 17, 18 anos. Nem bonita nem feia, mais para o magro e mercê da sua roupa usada e pingona, nem se lhe notava bem as formas. Eu, não tive sequer tempo para falar. Continuando:

“ Há muito tempo, já passaram quase 100 anos, ali aquele combro era então um horto de uma família das Naves. O pai, o Herculano Pinto, a mãe, Josefa e três filhos: o Manel, o António e a mais nova a Ana. Eram gente pobre, trabalhadora e rude.”

A moçoila não se calava e eu confesso que a partir de certa altura fiquei mesmo curioso, interessado pelo resto da história que, estava certo, da sua boca viria.

“Os irmãos, uns brutos, quase uns animais de mourejar trabalho e pouco saber falar, mais grunhindo pelo caldo ou pelo jantar. A rapariga, apesar de não saber ler e apenas escrever o seu nome, era uma moça que sentia. Parava até às vezes o trabalho para mirar melhor uma flor ou qualquer pássaro que por perto andava a pôr ninho. Andou na Doutrina na igreja e foi lá que aprendeu a desenhar o seu nome: Ana Pinto. Mas todos a conheciam por Pinta. Mas o que ela mais gostava era de ouvir as histórias dos Santos que o Sr. Cura lhes contava. Que bonito! Depois da Comunhão o trabalho da jorna seguiu como antes e só aos domingos podia ir à missa e passar pelo adro da igreja onde a mocidade se juntava por uma nesga de tempo. Uma vida dura e quase miserável! Mal começou a deitar mamas, o rapazio olhava para a Ana de modos diferentes, sorrindo-lhe. Ela, que ninguém lhe ensinou nada, apenas sua mãe lhe dissera que eram coisa de mulher, também se sentiu diferente. Para além do corpo, ao ver um rapaz novo mirava-o disfarçadamente com certo prazer, mas não dizia a ninguém. Pobre Ana!…

…Três domingos seguidos reparou num moçoilo, o Xico, filho do Miguel Paca, que lhe sorria com insistência, e numa das vezes até lhe piscou o olho. A Ana devolveu o sorriso, mas as suas faces ficaram vermelhas quando lhe viu o olho a fechar momentaneamente, sentindo-se comprometida. Nunca mais lhe saiu da cabeça o rapaz, pensando nele pelos dias adiante e, por vezes, parava o que estava a fazer para se deter no moço.

O Xico da Paca, mas que era Ferreira de baptismo, era um moço de altura meã, pele clara, cabelo às ondas, lábio fino, mas o que a fazia derreter ao dele se lembrar, era aquele sorriso que a cativava. Era mais velho que ela, só o conhecendo de vista até ao momento que o seu tino para ele se desviou.

…Penso que vossemecê já está enfadado de me escutar, mas isto é cruz que tenho de cumprir.”

Ela nem me deu tempo a responder, que não estava nada enfadado, até com muita vontade de continuar a ouvir o desenrolar da história. E continuou…

“Certa vez que a Ana caminhava para a ribeira com uma trouxa de roupa à cabeça, viu no seu direito o Xico. Ficou afogueada e apressou o passo. Ao chegar perto, ouviu-lhe:

– Ó Ana, vais com uma erva … e eu que te queria falar.

Ela estacou e saiu-lhe:

– O que é que vossemecê me quer?! E como sabe o meu nome?

O moço deu uma pequena gargalhada e do seu sorriso brotou:

– Como não houvera de conhecer a moça dos meus sonhos?! Ana, eu só penso em ti!

O coração dela ao ouvir estas palavras era um cavalo e o seu conhecimento parecia desfalecer. O moço pegou-lhe nas mãos e beijando-as disse:

– Queres namorar comigo?

Sem nada poder dizer, pois um nó atravessou-lhe a garganta, dizia que sim com a cabeça. Separaram-se com um até depois ao ver aproximar-se no caminho a maior alcoviteira da terra, a Isabelhinha Bugalha. Mas a esta não lhe passou despercebido o encontro do Xico e da Ana, logo espalhando pela aldeia ­­­­­­­­­que os dois namoravam…teria visto o rapaz beijar, num lampejo, as mãos da rapariga?!

Aos dois moços, tanto faz como fazia, pois gostavam um do outro e numa fugida se encontravam, quase sempre na volta do chão da barroca, vindos de regar ou sachar. As suas falas eram curtas. Ele continuava a beijar-lhe as mãos, e tudo isso a ela lhe sabia tão bem…

A Ana queria falar ao pai, tendo o Xico dito mesmo que lhe ia pedir autorização para namorar com a filha. Mas mal a Ana disse em casa, à hora da ceia, que o Xico queria dar umas palavras ao pai, o irmão mais velho, o Manuel, pôs-se aos berros dizendo que sabia ao que o Xico vinha. Que nem pensasse em falar para ele. Não sendo seu pai era o irmão mais velho e, portanto, proibia que ela namorasse esse ou qualquer outro Xico que só a queriam para brincar. Para se pôr nela. E quem olhava pelos pais que já estavam a ficar velhos?! E de nós, teus irmãos?

A rapariga nem sequer podia responder. Acabado de conversar com…

– Olha moça, tu se namoras, ou até se tornares a ver o tal filho do Paca, nem sei o que te faço. A ti e depois a ele.

A Ana ficou como uma pedra, mas dali a pouco deu-lhe um ataque de choro que muito demorou a acalmar, pois as palavras de sua mãe ainda mais a angustiaram:

– Olha filha, nós já estamos velhos e o teu irmão agora é que manda e sabes que ele tem mau feitio. Tem cuidado, vê o que fazes!

Apesar dos cuidados redobrados, a Ana Pinta às escondidas se foi encontrando com o Xico da Paca e eles pareciam cada vez ter mais afeição um pelo outro. Ele não era um bruto como seus irmãos ou até muito do outro rapazio. Tinha mesmo gestos bonitos para com ela. O seu irmão, o Manuel, olhava-a agora com desconfiança, mas foi reparando que ele se detinha a olhar a sua figura quando andava por perto, apanhou-o, mesmo, quase babado a olhar para as suas pernas, certa ocasião que a saia subiu ao se prender num galho duma giesta.

…Por uma tarde de Setembro, já as uvas se aprontavam para a vindima e o sol não aquecia tanto, a Ana foi à horta do chão do poço colher uns pimentitos tardios para o almoço do dia seguinte. Ficou surpreendida ao dar com o Manuel sentado na pedra junto à picota de tirar água, sacho ao lado. Ao vê-la, levantou-se e foi ao seu encontro dizendo:

– Anda cá que quero ajustar umas contas contigo. Não te disse para não veres o Paca? Tu desobedeceste-me!

A rapariga não sabia o que dizer, mas ganhando coragem botou-lhe:

– E que tens tu a ver com isso? Eu ando com quem quiser e só tenho de dar contas aos nossos pais!

O irmão, avermelhando-se, disse:

– Tu não andas com ele mais! Anda cá, pois se precisares de homem, tens-me a mim que tenho falta de mulher.

Atira-se à moça, agarra os braços e aproximando a sua cara da dela, beija-a e apalpa-a como um animal no cio. A Ana, bem tentava livrar-se do brutamontes, mas não podia. Esperneando foi deitada e levantada a roupa. Na ocasião que o irmão levava a mão às suas calças, a rapariga conseguiu livrar-se dos braços, tentou fugir, pôs-se de pé dizendo:

– És um animal, um porco. Vou dizer aos nossos pais e a todos a besta que tu és!

Colérico, fora de si, o Manuel apontou-lhe o dedo:

-Não vais dizer, não, que eu não te deixo.

A rapariga, ainda descomposta, tentava fechar os botões da blusa fazendo meças de se afastar. O bruto, com medo que ela desse aos dentes, agarrou no sacho e disparou-lho na cabeça por trás. A gaiata caiu redonda, nem tugiu nem mugiu mais, com sangue a sair pelo ouvido e pela boca. O animal ficou quedo, a arfar e a olhar para o que fizera.

No tribunal contou que atestara o golpe com a enxada por sua irmã, não lhe obedecer e se lhe ter oferecido, para que lhe permitisse andar com o Xico.

Ninguém acreditou no que disse, tendo ido parar ao degredo em África, e por lá ficou.”

-Pois… – disse eu, na folga da contadora. – Mas quem mandou pôr aqui a cruz no caminho?

– Foi o Xico, o namorado, que nunca mais foi o mesmo rapaz, dando para definhar e acabar novo com uma doença ruim.

Da narradora pareceu-me ver até duas lágrimas que rapidamente limpou. Aproveitando para lhe perguntar.

– Mas afinal, quem és tu, moça?!

-Eu, por aqui ando, por estes caminhos e encruzilhadas e reparo nas poucas pessoas que param para rezar pela alma que esta cruz lembra. E como vossemecê parou, cuidei que rezava e pensando que ia gostar, contei-lhe a história verdadeira da Ana Pinta. Ela nunca se entregou a homem. Apenas gostei do meu Xico.

Abri os olhos e saiu-me um oh de espanto, arrepiando-me. Naquele mesmo tempo levantou-se um remoinho de poeira, fechei os olhos por momentos e quando os abri, a criatura tinha desaparecido. Nem sei porque lhe chamo criatura. No sítio onde estivera parada todo o tempo a contar a sua história, não havia marcas na areia do chão, nem o vento soprou mais.

…E cada vez que passo pela cruz da Ana Pinta, rezo. Rezo pela sua alma, pela sua memória e mesmo com uma leve esperança de voltar a encontrar a catchopa.

( Ortografia segundo o acordo ortográfico anterior a 1990 )

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