– Rui Brito da Fonseca
Nasci em parceria e descendência de uma castanha e de uma bolota. Já não me ocorre quando isso foi, mas sei que há muito tempo. Depois de germinarem, os meus ossos cresceram e desenvolveram-se por cerca de cem anos. Durante essa longa fase, permanecemos estáticos, um num souto, outro num carvalhal não muito distante, na região de Trancoso. Passámos uma infinidade de gélidos invernos e sufocantes verões; despimo-nos nos primeiros, nos segundos demos sombras frescas e, nos finais dos longos estios, presenteámos quem era nosso dono de saborosas castanhas e bolotas, que nessa altura eram procuradas como alimento pelas pobres gentes que da lavoura viviam, labutando para os senhores de sol a sol, sem rendimentos que pouco mais eram que uma côdea de centeio negro de permeio com uma água de couves deslavada. Só nos dias de festa religiosa é que havia um pouco mais de conduto… Abateram-nos, derrubando-nos, éramos já um pouco velhos em anos, mas plenos de robustez. Cortaram o castanheiro e o carvalho roble em ocasiões diferentes que já não recordo, mas lembro que do tronco do carvalho foram serrados grossos pranchões, guardados por vários anos à sombra, para bem dessecados e não ficarem deformados pelo empenamento da madeira mal enxuta. Os de castanho, também ficaram alguns anos a secar, resguardados das chuvas e calores intensos. Não podia esquecer a data em que comecei a ganhar forma, em que obtive personalidade. Foi numa quarta-feira de cinzas, de um Fevereiro frio e sem chuva. Quatro homens acercaram-se de um grande pranchão, elevaram-no em peso, travaram-no num cavalete e começaram a serrar em comprimento. Usavam uma grande serra, manobrada por todos eles. Passado pouco tempo, do bloco de madeira surgiram várias tábuas grosseiras, mas bem lançadas. Foi nessa ocasião que nos conhecemos mutuamente: ambos os montes das duas madeiras repousavam lado a lado, cheirosas, depois do recém corte. A partir daí, foi a madeira novamente serrada, raspada, aparelhada e lixada, não já no mesmo local, mas sim em casa de um mester e carpinteiro na Vila de Pinhel, para onde fomos transportados num carro de machos por dois dias de jornada.
Na oficina de um tal Josué, cristão-novo, jornavam dois oficiais e alguns aprendizes, mas era o mestre que procedia ou orientava às artes de cortar, entalhar e armar. Os moços faziam o que lhes mandavam, mas passavam mais tempo na folgança que na labuta, sempre que apanhavam os mais velhos arredados.…
Num Junho em que o estio deu mostras de temporão, foi metida mãos à obra e aí comecei a botar forma. Josué, já não usava pele seca de cabra ou de ovelha para assentar os desenhos, mas sim papel, onde se viam os riscos de uma bonita mesa. Ouvi que aquele debuxo era como eu iria ser…nem acreditava , mas fiquei quase tal e qual como os traços a cor de sangue mostrados no papel! Não demorou muito a acabar o trabalho, pois eu fora encomendada por um Senhor, Filho de Algo da vila que ia casar sua filha em Castelo Rodrigo, razão porque dia sim, dia não, aparecia esse fidalgo a visitar o mestre, a saber se eu ficaria arrumada para o último domingo de Julho, data acertada para o matrimónio e, como fazia parte do dote da filha Genoveva, teria de estar entregue dois dias antes. E ele, Homem de Palavra, não queria que seu futuro genro e seu pai ficassem sentidos; gente, que percebi, aparentada ao alcaide de Castelo Rodrigo. Desta feita, todos se atarefavam para eu ficar pronta. Foram por fim armadas as gavetas, tendo sido, com goivas, alindadas as almofadas dos tampos com desenhadura direita, a modos aquadrada , trabalhadas por um dos oficiais de nome Afonso, o qual pedira a um dos ferreiros da terra para lhe forjar duas argolas e dois quarteirões de cravos em ferro.
Obra acabada, pareceu-me ter ficado com ar robusto mas airosa, pois como disse o mestre, eu deveria durar muitos lustres. As pernas inclinadas, as travessas recortadas em duas bocas e os rebaixos nos tampos das gavetas emprestavam um traço de fidalguia, fazendo-me sentir orgulhosa.
Quatro dias antes do acordado, fui carregada num carro de vacas, que se meteu ao caminho para o meu destino. A jornada muito penou, com os bichos a sofrer a bom sofrer para arrastar o carro com a diversa mercadoria, que teve de ser amarrada pelos boieiros que zupavam nos animais como se tivessem culpa da carga se desatar naqueles excomungados caminhos. No terceiro dia, lá chegámos às portas das muralhas, pressentindo-se logo que ia haver folguedo breve, pela boa sorte do filho do castelão.
Na verdade, a festança durou três dias e três noites, com muito povo e grandes senhores daquelas terras, todos animados com o enlace desse jovem casal. Eu fui posta, como prenda especial, no salão para ser apreciada e, sobre mim, foram também deixadas outras ofertas aos noivos: jóias, lavores finos , muitas louças, apetrechos em cobre e estanho. Havia também umas peças em cambraia, damasco e até e uma pele de gineta.
Alegre e sem cuidados foi a minha existência no palácio do castelão, o guardião da vila, pois, tal como muitas terras ao redor, pertencia ao grande fidalgo Cristóvão de Moura, de bom entendimento com El- Rei D. Filipe de Portugal e das Hespanhas.
Já depois da morte do fidalgo, e numa noite de primavera amena, foi o palácio invadido pela populaça e saqueado de todos os bens móveis e algumas partes imóveis, pois a sanha chegou ao ponto de demolirem as paredes, levando de lá as pedras. Eu também não escapei e, com a desenfreada e sôfrega rapinagem, vi-me atirada e a voar por uma janela. Fiquei só com duas das minhas quatro pernas, as outras partidas e desaparecidas. Mesmo assim, e depois de revolteadas as gavetas à procura de inexistentes valores , carregaram-me ao dorso de um macho levando-me, mesmo manca, para os lados de uma povoação ali perto, mas muito antiga e com várias casas ricas, Vilar Torpim. Depositaram-me na cave escura de uma delas. E para ali fiquei arrumada a um canto, sem grande serventia, por coxa… Aproveitaram a minha torpeza para servir aos mais variados objectos que precisavam plataforma de apoio, e as minhas então nobres e formosas gavetas, usadas como precárias arrecadações de cordéis e outras miudezas de pouco valor. Naquelas vis funções e local, envelheci duas gerações de proprietários e eu própria fui perdendo vigor. …Um dia, porém, trouxeram-me para o sol, olharam-me, e um plebeu com ares de carpinteiro ia dizendo que por um punhado de moedas de fracos réis, me punha de novo viva. O senhor da casa acordou e o presumido mestre martelo lá cavacou quatro pernas em frágil madeira de pinho, que facilmente me encaixou: era um trabalho fraco, muito longe da arte do há já muito desaparecido, mestre Josué. Mas, apesar daquela pobre prótese, ganhei outra utilidade, tendo sido levada novamente para um salão, onde me pousaram um castiçal de pequeno círio e, nas noites de inverno, também uma candela de azeite. E era lá que o Prior visitador assentava as côngruas e até os gastos da casa, por o patrão não o saber fazer, arrecadando nas minhas entranhas maços de papel grosso encapados de tosco pergaminho.
… O tempo foi passando, bem como gerações de senhores e criados, tantos que já não estou certo de quantos. Eu também me fui desgastando, contribuindo para isso as centenares de vezes que minhas gavetas deslizaram, o meu tampo enodoado e traquinamente gravado com instrumentos afiados pelos garotos da casa, raspado e servindo até de essa de defuntos, em certas ocasiões. Apesar de lavada e encerada em vários tempos de Ressurreição, as marcas da minha longa vida eram nítidas.
No curso desses anos, ouvi ribombares de batalhas próximas, trote de cavalaria amiga e inimiga e servi também de escrivaninha a militares que falavam estrangeiro. Das minhas gâmbias começou então a escorrer uma farinhinha de caruncho, que se espalhava pelo pavimento, polvilhando o soalho a que as criadas, por vezes, rogavam pragas ao limpar. …Certa ocasião, ou porque alguém bateu com punho forte no meu tampo, mas creio que se deveu mais à minha indisfarçável velhice, um dos caibros que serviam de perna, cedeu por carunchento e eu fiquei a três quartos. Olharam para mim e lastimaram eu estar acabada, remetendo-me para a arrecadação nos baixos da casa, que servia também de adega. Meteram umas pedras a servir de anteparo e, mais uma vez, ali fiquei a definhar com um uso nada consentâneo com o que fora a minha formosa e fidalga existência de outrora. Numa das poucas arrumações que por lá fizeram, apercebi-me que eu fora dada de oferta a um velho jornaleiro, servidor da casa, que vivia perto do solar, que de resto, também já não conservava a vetustez e opulência antigas, quedando por vários meses seguidos fechado, sem ninguém lá viver. Descarregada sem cuidados de maior, meteram-me num curral, que não me abrigava completamente das chuvas fortes. Fui poiso de galináceos e companheira de bácoros que ali medravam. Pelas minhas gavetas ora gretadas, as aranhas e ratos passeavam, e o meu tampo, outrora um dos meus orgulhos, cada vez mais encarquilhado, foi perdendo cor, deformando-se como folha seca, pátio de irrequietas sardaniscas no verão. Permaneci muitos e muitos anos naquele lugar e tive mesmo que suportar umas tantas quantas pedras caídas de uma parede desabada. O curral também acabou por deixar de servir de cortelha e, abandonado, ganhou ervas e silvas
… Penso que essa velha casa a quem pertencia foi vendida, e os novos donos mandaram muitos dos velhos trastes, tábuas e paus retorcidos para a entulheira. Senti-me atirada para um tractor que, carregado, foi aliviado numa montureira perto, fora do Vilar. Confesso que me conformei com a minha inutilidade e que a minha existência terminara: seria consumida pela podridão da terra húmida do local, ou então queimada como velha lenha, desaparecendo para sempre…
…No entanto, poucas semanas ali quedei. Um dia, senti que alguém mexia em mim. Olhou-me, remirou-me e, apesar de eu ser um miserável trambolho, ténue parecença da há muito fugida mocidade, notou em mim nobreza ancestral e uma forma invulgar. Devia ser um conhecedor! Rapidamente me desafogou de outras lenhas amontoadas e me meteu na bagageira de um carro que conduziu até à vila de Almeida e daí numa grande viagem até aos arredores da cidade do Porto, imagine-se!
Este meu salvador – por certo, entendido – pôs-me arrecadada por algum tempo numa cave, mas, um belo dia, fez-me renascer com a ajuda de um mestre carpinteiro, tendo-se desdobrado ele próprio na reconstrução das minhas enrugadas faces , usando goivas e formões fez enxertos de lenho maduro onde precisava, ficando como uma nova pele. As minhas pernas foram de novo encaixadas devidamente em ângulo certo com madeira apropriada de castanheiro, tal como o grande tampo. Por fim, compostas as ferragens das gavetas, e de novo encerada. Ah, que saudades!
Penso que voltei ao meu esplendor, apesar dos meus mais de quatro séculos de vida atribulada. Sinto-me rejuvenescida! Compartilho o orgulho e uma ponta de indisfarçável vaidade do meu novo dono deste início do século XXI.
Assim pudessem os humanos ter a forma da minha existência!…Mas tenho esperança que ainda hei-de ver passar por mim muitas gerações de meus donos! A minha rejuvenescida aparência