A Páscoa na minha aldeia

 

– Etelvina S. Ferreira

Na minha infância o domingo de Páscoa era o dia do ano mais aguardado, senão o mais importante de todos os dias, ao longo do ano. As bordas dos campos e jardins enchiam-se de flores da páscoa (aleluias), aquelas flores miudinhas que floresciam ao longo das hastes e que transformavam a paisagem num mar de brancura. Já as crianças, nas suas traquinices, apressavam-se a colher os pampilhos que inundavam tudo de amarelo e com eles faziam grandes colares com que se enfeitavam.

Nos dias anteriores a água do rio lavava os cobertores, arejavam-se e perfumavam-se as casas com ramos de alecrim, limpavam-se as paredes, esfregavam-se os soalhos, substituíam-se os papéis que enfeitavam o rebordo dos armários da louça, ao mesmo tempo que se procedia à lavagem e renovação da palha dos colchões. Enchiam-se, com a ajuda duma forquilha, feita a partir de um ramo duma árvore. Areavam-se os tachos e panelas e tudo tinha de estar a brilhar para receber o Compasso.

Na véspera a azáfama era enorme. Colhiam-se os verdes nas margens do rio para fazer o tapete  que cobriria os caminhos  e matavam-se os galos ou os coelhos para serem cozinhados no almoço de Páscoa. Naquela altura comia-se pouca carne, só quando “o rei fazia anos “ e os animais eram de criação caseira.

O dia de Páscoa amanhecia bem cedo. Ornamentavam-se os caminhos e ladeiras onde passaria a Santa Cruz com tapetes de verdes, pontilhados  aqui ou ali por algumas flores.

As crianças andavam numa euforia! Vestidas com as suas melhores roupas, era nesta altura que estreavam roupa nova, mesmo os mais pobres, cujos pais tinham poupado uns tostõezitos para a ocasião.

Pelas sete horas da manhã os vários compassos reuniam-se na Igreja Matriz para depois, cada um deles, percorrer o trajeto que lhes fora atribuído.

No meu lugar começavam sempre pela parte que ficava mais a norte  e eram estes os primeiros a receber o Compasso, bem cedinho, no início do dia. Mais tarde o cortejo chegaria junto ao Rio Ferreira onde os esperava  um lauto almoço oferecido pelos lavradores. Lá a mesa era mais farta, embora nem sempre correspondesse à realidade, como veremos a seguir.

O sino, nas mãos de uma jovem criança, já se fazia ouvir de mansinho no cimo da aldeia e aquele som era uma música melodiosa que entoava nos ouvidos dos meninos. A alegria era contagiosa!

– Já lá vem…já lá vem…, gritavam eles a plenos pulmões numa grande euforia.

O padre nem sempre fazia parte do grupo porque havia falta deles. A freguesia era grande e, normalmente, o Senhor Prior integrava o Compasso que percorria a zona mais próxima da igreja. Mas nem assim a benzedura deixava de ter o seu efeito.

O primeiro a entrar nas casas era o homem que a transportava a caldeira da água benta e que aspergia tudo e todos numa bênção desordenada. As crianças, por castigo ou por bondade, tinham direito  a levar com mais água e o ramo ganhava movimento próprio por cima das suas cabeças. Ao mesmo tempo outro elemento da comitiva lia uma pequenina passagem da Bíblia, muito rapidamente, à qual ninguém prestava atenção. Depois entrava o homem que transportava a cruz e todos se ajoelhavam para a beijar. A seguir vinha o que transportava o saco do dinheiro, não poderia faltar, claro, e todos contribuíam de acordo com as suas possibilidades. Lá fora o sineiro não parava de tocar.

Era assim a visita pascal, naqueles dias, que passava num ápice como uma rajada de vento.

Aquela era uma terra de mineiros e, naquela altura, poucos anos após a segunda Guerra Mundial, o trabalho nas minas começava a escassear. As dificuldades surgiam, a fome era muita e as doenças, como por exemplo a tuberculose e a silicose, atingiam praticamente todas as casas. Mas não havia preocupação nenhuma em beijar a Santa Cruz. Se a fé movia montanhas porque não poderia afastar as doenças? Ou seria pura e simples ignorância?

Os breves minutos que o Compasso permanecia dentro de portas variava de casa para casa. Era nesta altura que o tempo media e separava os estratos sociais. Enquanto nas casas dos pobres o Compasso mal entrava já estava de saída, nas casas dos mais abastados havia uma mesa coberta por uma bonita toalha branca, de linho e, em cima, por regra, uma garrafa de vinho do Porto assim como regueifa doce e um sortido de bolachas champanhe, para acompanhar a pequena conversa de circunstância. Não faltava também um pequeno prato onde uma nota bem à vista ajudava a purificar a casa.

O descontentamento de alguns, motivado talvez pelo apetecível odor a comida, manifestava-se através da impaciência na espera. De vez em quando uma criança espreitava através da porta entreaberta da casa alheia e media a demora, para depois correr a dar a notícia.

– Cambada de bêbados que já vindes a trocar as pernas. –  Ouvia-se uma voz em surdina, porque dizer mal da igreja, abertamente, era pecado e dava prisão.

Havia um lavrador, com alguma abastança, que todos os anos se dirigia à mercearia da terra para comprar uma garrafa de vinho do Porto.

– Ó moça, aponta aí no livro, …mas não abras a garrafa. Se eles não quiserem volto a trazer e tu riscas aí.

E todos os anos, invariavelmente, a garrafa voltava à procedência.

Ainda hoje a Páscoa representa, para mim, um tempo de renovação, um tempo de arejar as ideias após o longo e obscuro inverno que a precede. É urgente eliminar do pensamento tudo que seja negativo para que não haja qualquer resquício que atrapalhe o caminho.

 

 

 

1 thoughts on “A Páscoa na minha aldeia”

  1. Maria de Lourdes Pereira e Almeida

    Grandiosa descrição com a qual em grande parte me identifico. Eram momentos muito vividos, de muita azáfama e muito calor humano. Obrigada pela partilha.

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