Aboim Ascensão, um benemérito

Imagem: Lactário – Início Séc. XX

– Lino de Castro

Provavelmente não por defeito, mas por excesso, inclinamo-nos a criticar Governos, Instituições e pessoas. E de entre estas últimas, mais aquelas que o vulgo qualifica, apodando-as, burguesas. Contudo, se justo é criticar o que se considera mal, injusto ou menos bem para o indivíduo ou para a comunidade, provavelmente também criticável será não reconhecer e enaltecer o que aquelas, Instituições ou Pessoas, colegialmente ou de per si, criam, desenvolvem ou alentam para o bem e o melhor de outros indivíduos, do próximo ou da comunidade. É o caso, inquestionavelmente louvável, do homem bom e benemérito Aboim Ascensão. Recordemo-lo.

Na primeira metade do século XX, graças aos progressos da medicina e à melhoria dos sistemas de abastecimento e práticas de higiene, registou-se uma expressiva diminuição da mortalidade infantil e do aumento da esperança média de vida. Mesmo assim, no início da década de cinquenta, aquela em que a maioria dos nossos leitores nasceu, por cada mil crianças nascidas, com menos de um ano de vida morriam em Portugal cerca de oitenta (hoje em dia esse trágico número é inferior a três).

No acervo de Joshua Benoliel, o decano do fotojornalismo português, encontram-se testemunhos vívidos da vida na transição para o sec. XX em bairros de Lisboa, como o de Alfama.

Como hoje, as vítimas daquele antanho, não se distribuíam uniformemente pelas diferentes classes socioeconómicas, e tal significava que nem as famílias mais abastadas eram poupadas à tragédia de ver partir precocemente as crianças das suas famílias. Tão elevada era a mortalidade infantil que, a par de Rafael B. Pinheiro que com o seu humor mordaz parodiava tal horrível necrologia, também o jornalista e poeta Guerra Junqueiro, num tom mais lúgubre, publicou um livro com o eloquente título Finis Patriae.

Nos tumultuosos anos que precederam o regicídio, em 1908, e nos que posteriormente se seguiram com o início da República, o militar Rodrigo A. Aboim Ascensão viu, em 1899, partir o seu jovem rebento ainda antes de completar um ano de vida. O acontecimento, funesto, abalou severamente o militar e a sua mulher Olimpia Gomes.

Tendo visitado a Exposição Universal de Paris no ano seguinte, o capitão Aboim Ascensão trouxe da cidade a ideia-semente que haveria de (im)plantar em Portugal, a partir da exibição de creadeiras, hoje designadas incubadoras, cuja observação naquela Exposição o deve ter impressionado ou fascinado.

Com funções de comando na Companhia de Cavalaria da Guarda Fiscal, junto a Alfama, o capitão cruzava-se quotidianamente com a pobreza das famílias do bairro, vítimas das carências mais elementares. Em paralelo, em poucos anos nesse virar do século, a população de Lisboa duplicou e grande parte dos aspirantes a operários vivia na miséria. Esta realidade terá sido instrumental para que o militar se entregasse decididamente a um projeto, pioneiro, no pais.

Sob o risco de arquitetura de Ventura Terra, Aboim Ascensão viu concretizado o seu projeto, inaugurando em 1903 o Lactário de Lisboa, em Alfama, naturalmente. Apesar do nome, a instituição não se limitava à distribuição de leite de qualidade controlada (a lactentes), pois abrangia também apoio pediátrico e social. O sucesso da iniciativa foi proporcional ao número de necessitados que orbitavam em redor daquela zona ribeirinha do Tejo, onde então se concentrava larga atividade fabril e portuária. No final da década de vinte a rede de distribuição de leite alargou-se a Alcântara e ao Beato, quatro postos, e, em muitos aspetos, constituía a verdadeira assistência social da cidade.

Foram incontáveis dezenas de milhar as crianças alimentadas com leite do Lactário, e tantas outras milhares as consultas pediátricas que lhes foram prestadas, desde 1903 a 2006. Não é possível calcular o número de vidas que a Instituição e o seu Lactário terão ajudado a salvar, mas o seu legado transcendeu seguramente as suas multíplices valências: a entrega de leite, o apoio social e a prestação de cuidados médicos. A Instituição foi pioneira no nosso país na prestação de cuidados neonatais e desempenhou um importante papel no combate a superstições perniciosas, das quais não cabe aqui falar, promovendo uma abordagem moderna, porque científica, da puericultura.

Rodrigo d’Aboim Ascensão faleceu em 1930, aos setenta anos de vida, e a sua esposa Olímpia três anos depois. Ambos partiram do nosso meio, mas a obra de Medicina Social que criaram não se extinguiu com o seu desaparecimento; manteve-se, aliás, na vanguarda da prestação de cuidados pediátricos a muitíssimas mais crianças de colo, até quase recentemente, ao longo de mais de um século ao serviço de humanos semelhantes ao fundador do Lactário.

O espólio da Instituição está hoje recolhido e em exposição no museu do Lactário, no edifício que inicialmente foi o Lactário de Lisboa. Dois familiares do fundador, filha e sobrinho, continuam, em valências diversas da inicial, prosseguindo a bondade de Aboim Ascensão.

Se não nos coibimos de criticar quase tudo, e quantas as vezes por tudo e por nada, igual liberdade de expressão não deverá ser exercida em louvor, justamente, da obra e do legado de Aboim Ascensão? Pelo que criou e desenvolveu em exclusividade, e a expensas próprias, sublinhe-se, generosamente, bem merecedor é do enaltecer e reconhecimento por todos, como benemérito da nossa sociedade.

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