As Barqueiras

Nesse umas vezes tempestuoso e indomável, outras pachorrento e vagaroso rio, em tempos idos, nas margens que lhe davam forma e guiavam era, então, um corrupio de vozes.

Ao longo de centenas de anos, homens e mulheres viviam de, e para o rio Douro. Os barqueiros (as) e as suas barcas de passagem, que, na inexistência de pontes, tudo transportavam, de pessoas, a animais e a mercadorias.

Todos os que pretendiam alcançar a outra margem gritavam a plenos pulmões “ó, barqueiro (a)” ou, no caso de conhecerem pelo nome, “ó, ti Maria, “ó, tio Manel”.

Diziam então os contadores de estórias:

Havia uma barqueira de nome Luísa, filha de um barqueiro falecido em dia de inverno, quando a correnteza do rio só era desafiada pelos mais duros e corajosos.
A Luísa, pelo infortúnio do pai, fez-se barqueira  assegurando assim a sobrevivência da família.

Não sei precisar o local onde a sua barca fazia a passagem entre margens.

Um dia, nesse deambular entre margens no seu pequeno barco, um jovem e belo rapaz foi sua companhia. A cada sucessiva remada, iam trocando olhares envergonhados. Pelo trajar de capa, talvez fosse um estudante a caminho da Universidade de Coimbra. Era Outubro e as aulas deviam estar a começar.

Durante anos, ela recordava-se das breves palavras trocadas e do seu atrevimento:
— A menina permite-me que lhe leia um poema?
Coisa que ela nunca tinha ouvido até então!
Que forma estranha de juntar as letras. Aquelas estranhas palavras tinham então despertado nela algo de novo que nem sabia ser possuidora, naquele seu corpo.
A viagem, embora curta, pareceu-lhe sem fim.

O seu encanto foi tal que nem reparou que o passageiro leitor, por esquecimento, talvez, tinha deixado um livro no seu barco. Na impossibilidade de o devolver, esperou que um dia aquele belo exemplar da natureza a procurasse em busca do tesouro esquecido. O tempo passou e ele nunca mais por ali passou. Agora, aquele livro era a sua companhia.

Nos tempos de menina e moça, quando acompanhava o seu pai, este tinha- lhe ensinado a conhecer as letras.
Na altura, ela dissera:
— Pai, para que necessito eu de conhecer as letras? Ensina-me a conhecer as águas do rio, isso sim!
Ao que o pai respondera:
— Um dia, vais perceber para que servem as letras das quais se constroem as palavras.
Aquele livro era então guardado como se uma preciosidade fosse. Os dias sucediam-se às noites. O livro era devorado vezes sem conta, num prazer sempre renascido dia após dia, ano após ano.

Contavam as gentes ribeirinhas que ao longo da sua vida, a barqueira-poeta, assim ficou conhecida nestas margens do Douro, lia sempre um poema aos seus viajantes enquanto entre cruzava os remos impulsionando a embarcação entre margens.

Observo o rio, agora domado pela ação dos homens e das mulheres e vem-me à ideia um poema de Manuel Araújo da Cunha, in Barcos de Papel, março de 2019, que poderia então ser lido pela Luísa barqueira.

 

“Tão puros os olhos que avistam os barcos
a subir encostas.

Tão puras as mãos que tecem as velas
das altas montanhas.

Olhos, barcos, velas, encostas e montanhas

Tudo é rio, tudo é água a morrer à sede.”

– Artur Sousa

1 thoughts on “As Barqueiras”

  1. Muito bom.
    Já conhecia a estória por uma publicação tua anterior, mas sem duvida que é sempre com agrado que se lê, até porque, de cada vez, se pode entender com outra capacidade de analise à luz do Património Cultural Material e Imaterial, enriquecido com a literatura oral.
    Parabéns.
    Verissimo Dias

Deixe o seu comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *