O Fado- José Malhoa
Casas de sofrer
– Carlos Ferreira
…Ao fim e ao cabo, cada vida não é mais do que
a soma dos factos contingentes, uma crónica de
intersecções casuais de golpes de sorte, de
acontecimentos aleatórios que revelam apenas
a sua ausência de propósito… (1)
No longínquo período que conhecemos por renascimento, ou o século das luzes, um homem, tem uma concepção genial do seu tempo. Erasmo de Roterdão (1466-1536) escreveu uma carta a um seu amigo, Guilherme de Budé (1467-1540): ” Deus imortal, que século vejo abrir-se diante de nós” (2). Passados estes quase cinco séculos surpreendemo-nos com a evolução da humanidade na literatura, astronomia, matemática, medicina, filosofia e tantas outras atividades que proporcionaram um avanço significativo no conhecimento. Hobsbawm (3) através da sua pena descreve o século XX como uma centúria de grande avanço tecnológico e longevidade do Homo Sapiens Sapiens e ainda no aspeto de desenvolvimento das sociedades e das culturas.
Será que o desenvolvimento filosófico, humanista, acompanhou o desenvolvimento científico? Não restam dúvidas que o desenvolvimento científico foi enorme! Basta pensarmos na chegada do homem à lua transportado numa aeronave (4), na descoberta da penicilina (5) que permitiu salvar muitas vidas durante a II Guerra Mundial, nas novas tecnologias e tantos outros avanços.
A filosofia, como todo o conhecimento, visa levar o ser humano à acão refletiva. Resulta de um exame crítico dos fundamentos das nossas reflexões, convicções, preconceitos e até das nossas crenças. O estudo da filosofia desenvolve o caráter ético, autónomo, criativo e fundamentado na busca de soluções para conflitos, construção de estratégias de trabalho, divergência de ideias e cooperação para enfrentar problemas.
A formação humana torna o homem humano.
Assistimos no Séc. XX e nas primeiras décadas do Séc. XXI aos mesmos problemas da antiguidade. O controlo do Mediterrâneo (Mare Nostrum) está hoje na ordem do dia como esteve na civilização e cultura romana após três Guerras Púnicas.(6)
Há germes humanos que é preciso desenvolver. Precisamos perceber o mundo para atuar de maneira humanista na sociedade em que vivemos. Precisamos que a filosofia humanista
Atinja o mesmo nível de desenvolvimento que as outras ciências.
Perceber o mundo, a cidade, a nossa casa, é essencial para podermos agir com humanidade, contornarmos os problemas e trabalhar nas soluções possíveis. Por vezes a resposta mora ao lado, mas a nossa cegueira não permite visualiza-la..
A este propósito lembrei-me de uma história que li num livro de José Gomes Ferreira (1900-1985). Este homem foi escritor, poeta, e embaixador, viajou por muitos países e conheceu suas culturas. Escreveu um texto sobre o irreal quotidiano e um dos capítulos tem por título “Casa de Sofrer”.Estas “Casas de Sofrer” referem-se às Casas de Fado que juntamente com a saudade são caraterísticas do povo português.
Neste capítulo ele descreve ao seu colega, embaixador de Inglaterra em Portugal, o espaço de forma soberba. Este pretendia, com muita insistência, visitar uma casa de fados e sentir uma parte da identidade portuguesa representada naquele espaço.
“…Ambiente de bicos de pés. Os criados deslizavam, irreais, com sapatos de fantasmas. No estrado alinhavam-se duas cadeiras à espera do viola e do guitarra que entraram em ritmo de enterro, entra o cantor, mancha negra do cabelo aos pés solenidade de telegrama de pêsames, lívido, suado, sinceramente infeliz, cara de serenata à meia noite a noivas mortas. O cultivador da canção nacional em transe de evocação espírita iniciou a história da mãe, do sofrimento dos filhos, da crueldade da guerra, da nossa senhora, da rapariga perdida, do homem esfaqueado, dos pobres e perdidos da vida. Entretanto os frequentadores da casa de sofrer embalados pela monotonia cadenciada daquela voz lacrimosa, todos sofriam imenso não derrubando lágrimas, mas dores abstratas, esquecidas, mentais. A certa altura tentou falar comigo, psiu, não me pergunte nada, sofra, estamos aqui par sofrer, vá, sofra não refile…”(7) E o pobre inglês sofreu o mais que pôde.
Recordo com saudade um velho mestre escola, Snr. Prof. Dinis, que segurando o ponteiro numa mão, vestido com um alvo uniforme branco, perguntava:
– Quem souber que levante o braço.
Será o mundo uma imensa máquina de sofrer?
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(1) AUSTER, Paul- A triologia de Nova York, pág. 205. Edições Asa II 1999
(2) VEDRINE, Heléne- As filosofias do renascimento, 1971, pág, 7
(3) HOBSBAWM, Eric Jonh- A era das revoluções (1962), A era do capital (1975), A era dos impérios (1987), A era dos extremos (1994)
(4) Wilber Wright e Orville Wright- Pela primeira vez na humanidade em Dezembro de 1903 uma aeronave mais pesada do que o ar levanta voô. Grandes acontecimentos do século XX. Seleções do Reader´s Digest 1979
(5) FLEMING, Alexander- Descobe a penicilina em finais dos anos 20 do século passado. Grandes acontecimentos do século XX. Seleções do Reader´s Digest 1979
(6) MONTANELLI, Indro- História de Roma- Da fundação à queda do império. 2006; 2ª Edição. Edições 7
(7) FEREEIRA- José Gomes- O irreal quotidiano. Portugália Editora 1971
(8) FERREIRA, José Gomes- O irreal quotidiano. Portugália Editora 1971, págs 125 a 129
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(7) FEREEIRA- José Gomes- O irreal quotidiano. Portugália Editora 1971
(8) FERREIRA, José Gomes- O irreal quotidiano. Portugália Editora 1971, págs 125 a 129