Couce, momentos de vida em tempos de antanho
– Etelvina Sousa Ferreira
Era uma manhã de primavera. O sol levantara-se há algum tempo por trás dos montes, mas Apolo tinha dificuldade em subir aquela serra de declives acentuados. Assim acreditava Aélia Accila, filha de Luccio Aelios Accilo Quarto, um escravo liberto que viera de Roma trabalhar, a encargo do Império, para a exploração aurífera de Couce.
A menina acabara de se levantar após uma longa noite e esfregava os olhos, sonolenta, espreitando pela janela as teias de aranha cobertas do orvalho matinal, que brilhavam como pérolas, penduradas nas frinchas das portas dos aidos e nas plantas que rodeavam o caminho que atravessava a aldeia.
Aquele lugar sabia-lhe a sedução, muito diferente do mundo turbulento onde vivera anteriormente, mas o seu encanto residia, principalmente, nos olhos dos que amavam o silêncio e a paz.
Couce, assim se chamava a dita aldeia ficava no vale entre as Serras da Cuca-Macuca e a das Pias. As casas, feitas de materiais que saíram da exploração mineira, constituíram-se num aglomerado conjunto tendo em consideração o aproveitamento do espaço e o sentido de defesa em caso de ataques. Uma delas, a de paredes arredondadas, tivera certamente em conta o terreno, mas também a inspiração no modelo de casas no antigo castro da Serra das Pias. Era esta a casa onde vivia Aélia.
Os animais, ovelhas, cabras e bois, principalmente, alojavam-se no primeiro piso e o piso superior servia de habitação onde não faltava a lareira. No seu aconchego, principalmente nas gélidas noites que ali se faziam sentir, criavam-se histórias fantásticas através da voz do pai Aelios Accilo.
Ao fundo da aldeia havia uma eira de pedras de lousa e ao lado uma construção rudimentar que se destinava a armazenar os cereais.
De dia a aldeia iluminada pelo sol resplandecia com o brilho das pedras e à noite, à luz da lua e das estrelas, conjugada com o som uivante dos lobos, transformava-se num conto de fadas.
A Primavera, Proserpina segundo as crenças dos seus pais, voltara do Hades com toda a sua magnificência e vestira-se a preceito. Os montes cobertos de um manto arroxeado, feito das urzes floridas, o amarelo dos tojos, os diferentes tons de verde da carqueja, das árvores e arbustos, o calmo rumorejar das águas do rio Ferreira saltando os açudes, a música e a plumagem dos diferentes pássaros, assim como o coaxar das rãs, numa sinfonia perfeita, derretiam o coração de Aélia.
O pai tinha saído, bem cedo, para vigiar e cobrar os impostos nas minas de exploração do ouro, os fojos, que abundavam nas encostas da Serra da Pias e da Cuca-Macuca.
Aélia, uma jovem menina, ainda vivia no tempo das brincadeiras e por isso as suas tarefas eram leves. Tinha começado a aprender a tecer num pequeno tear que herdara da irmã, ao mesmo tempo que trabalhava os fios do linho que crescia nos campos e a lã das ovelhas que criavam em casa. Por vezes acompanhava a mãe e os irmãos, mais velhos, nas tarefas agrícolas e divertia-se a vigiar os animais ou a brincar com a água desviada do rio Ferreira que corria num rego na borda do campo. Adorava ver travar e desviar a água com a ajuda duma lousa, retangular, e assim irrigar as plantações.
A aldeia, situada entre as encostas das duas serras tinha a rodeá-la de um lado a floresta de carvalhos e sobreiros e do outro os campos das culturas que desciam em anfiteatro até ao rio. Ali cresciam os cereais para além dos legumes e frutos que alimentavam aquela população de mineiros que se esforçavam naquele trabalho difícil da exploração aurífera, mas também de mais trabalhadores como carpinteiros, ferreiros, barbeiros e outros que complementavam aquele aglomerado populacional e proviam às suas necessidades.
Aélia tinha um grande amigo, Aurelius Rufinus Quinto, um menino que crescera e aprendera com ela e que, embora vizinho, fazia parte da família. Estes dois nasceram almas gémeas e por isso andavam sempre juntos.
– Hoje de tarde queres ir ao monte? Descobri um ninho de pássaro com ovos e eu preciso de ver se já nasceram os passarinhos. – Dizia Aurelius sabendo de antemão a resposta.
– Combinado, mas só se formos para o lado da Serra das Pias. A minha mãe diz que as deusas da má fortuna andam lá em cima, na Cuca – Macuca, e hoje está um dia de nevoeiro intenso, sinal que o caldeirão já está a fumegar.
Os dois percorriam os montes vivendo em plena comunhão com a natureza. Era frequente vê-los a atravessar a ponte romana sobre o rio Ferreira e meterem-se pelos trilhos em direção à Serra das Pias. Pelo caminho aconteciam encontros mágicos. Uma ou outra salamandra e bonitos tritões de ventre dourado aproveitavam o sol estendidos em cima das rochas quartzíticas, dobradas com o peso dos cataclismos. Os pássaros, de várias cores, sobrevoavam por cima das árvores vindo pousar nos ramos, compondo um alegre chilrear, a única música possível para os seus ouvidos.
Por vezes sentavam-se na margem do rio, pés dentro de água, e nem precisavam de falar. As rãs coaxavam, felizes, o rio passeava no leito, lentamente, fazendo uma pequenina ondulação ao passar sobre as pedras que se atravessavam no seu caminho, e tudo conduzia ao silêncio das almas, numa admiração profunda pelo milagre da natureza.
Naquele dia iriam ver o tal ninho do pássaro, como tinha sido combinado, mas teriam de ser cautelosos por muitas e variadas razões que veremos de seguida.
O primeiro passo era atravessar o rio, antes do moinho, por cima das lajes que formavam a levada e onde, por vezes, principalmente de verão, as mulheres lavavam as togas de linho e outras coisas que lhes iam na cabeça. As dedaleiras pontuavam as margens emoldurando a paisagem num quadro pintado pela mãe natureza.
A travessia fez-se com a ajuda de Aurelius, o mais forte e protetor, porque nessa altura o rio ainda levava algum caudal. Depois seguia-se o caminho entre os tojos, ladeados por carvalhos e sobreiros, e mais acima os pinheiros. O trajeto fazia-se subindo cada vez mais e eles paravam constantemente, não pela dificuldade da subida, mas pelos achados que, a cada passo, prendiam a sua atenção. Bastava tropeçar numa pequena pedra para aparecerem desenhos no seu interior, uns desenhos que pareciam animais esquisitos e plantas e que acabavam por ir parar à sacola onde guardavam os tesouros.
Eles não sabiam, mas numa época muito remota estas terras fizeram parte dum mar onde as conchas e restos dos animais e de plantas foram fossilizados, pela ação dos cataclismos e do tempo.
– Agora temos de caminhar silenciosamente. O ninho encontra-se aqui perto, nos ramos de um pinheiro e não podemos assustar a mãe. – Sussurrava Aurélios, ao mesmo tempo que caminhava de gatas para não ser avistado.
E o ninho lá estava! Dos filhotes, três, apenas se avistava o bico a sair do rebordo do ninho, mas a mãe, pés assentes no ramo do pinheiro, junto deles, volteava a cabeça para um lado e para outro, vigiando as suas crias, não fosse aparecer algum intruso. A ave era linda de morrer, um gaio fêmea de asas azuis e bico amarelo!
Antes já tinham avistado outros pássaros, verdilhões, peneireiros, falcões peregrinos, um chapim-real, piscos de peito ruivo e outros e, até, uma águia que voava no céu, um voo rasante, à procura de presas.
Por outro lado no chão pululavam outros bichos que provocavam os seus encantos ou a sua repulsa: coelhos bravos, esquilos, a cabra-loura, sardões de várias colorações, muitas borboletas e até cobras e raposas das quais fugiam a sete pés.
Eram horas de voltar para casa, mas antes ainda iriam espreitar o fojo abandonado que se encontrava ali perto. Se os pais descobriam levariam um valente castigo, mas esse era o segredo deles.
Abordaram o fojo com muito cuidado, não fosse caírem lá dentro para nunca mais serem vistos. O que os seus olhos viram maravilhara-os. As salamandras percorriam as paredes da gruta para cima e para baixo agarrando-se sem a menor dificuldade. De onde a onde, nas gretas da parede, cresciam fetos verdejantes e os morcegos de grandes asas negras voavam, dando voltas no ar para desaparecerem, logo de seguida, nas profundezas.
Mais tarde, quando passassem novamente junto ao rio, ainda teriam tempo de mergulhar para retirar os vestígios da caminhada, tempo para admirar as libélulas e os guarda-rios, uns pássaros pequeninos de plumagem azul e amarela, e ainda os vários seres vivos que habitavam a parte mais parada das águas. Com os olhos fixos na superfície onde dançavam os alfaiates deliciavam-se com os peixes que saltavam á superfície provocando ondinhas circulares e até, por vezes, um cágado no seu lento caminhar por entre as ervas, na borda do rio.
Mas sem terem atravessado, novamente, o rio não estariam completamente sossegados. Os javalis abundavam e nunca sabiam de onde é que eles poderiam investir. Era por isso que Aurelius carregava consigo uma vara. Era a sua arma de defesa.
Aproximava-se a hora da cena e a essa hora já teriam de estar em casa. Depois desta refeição seguir-se-iam as orações aos Penates, os deuses do lar, Júpiter, Marte e Quirino, que se encontravam num pequeno altar, num canto, à entrada de casa, juntamente com Ceres, a deusa das culturas e da abundancia.
Quando entrou em casa Aélia viu o pai de sobrolho carregado, com cara de poucos amigos e a mãe fez-lhe um sinal para ter cuidado.
Pelo que deduzia o caso estava feio e desta não se safaria, pensava ela.
– Por Júpiter… por onde andaste tu que já não te pomos os olhos em cima há horas?
– Estive a guardar os campos de milho com o Aurélius. Se não acredita vá a casa dele e pergunte. Olhe que até escorraçamos uns javalis que por lá apareceram!
– E encantaram serpentes, aposto! Vós os dois fazeis uma boa parelha. Pelo menos espero que não se tenham atrevido a ir à Rocha de Lúcifer. Se lá caís ele agarra-vos com todas as unhas.
Sois os maiores mentirosos do mundo! Os vossos javalis eram da família do porco-espinho, tenho a certeza – e dito isto o pai deu uma grande gargalhada.
Desta vez safaram-se, mas a promessa estava assumida: longe, sempre longe, da Rocha de Lúcifer, aquela enorme rocha que quase tocava no céu e se inseria na margem do rio, logo abaixo do moinho. A fama desta pedra parecia transportar toda a maldade do mundo!
No dia seguinte, ou noutro qualquer, repetir-se-iam os gestos, os passos e os pensamentos destes dois meninos, ou de outros quaisquer, pois o encantamento e a inocência das crianças nunca mudarão, por mais tempo que o tempo dê ao próprio tempo.
Conto publicado na Coletânea “Contos Das Serras Do Porto”