– Etelvina S. Ferreira
Estavamos em abril de 1960, mês da primavera por excelência, quando os pequenos bolbos furam a Terra e cobrem os montes de flores azuis e amarelas. Mais logo florirão as urzes formando um manto arroxeado pontilhado pelos tufos de tojos amarelos, um belo tapete delineado pelo mestre da natureza com arte e imaginação.
Era domingo de Pascoela, o domingo a seguir à Páscoa e o cortejo Pascal dirigia- se, como aliás já era costume desde tempos imemoriais, para a distante aldeia de Couce, uma pequenina aldeia entranhada no meio dos montes, entre as serras de Santa Justa e a de Pias, nas margens do rio Ferreira.
Esta aldeia, em tempos muito remotos foi um povoado primitivo, depois habitada pelos romanos e seus escravos que construíram casas com blocos de quartzite provenientes da exploração mineira do ouro e do xisto e, mais tarde, até chegou a ser local de uma importante feira de gado.
O Compasso partira da Igreja Matriz bem cedo na manhã e, em passo acelerado, percorrera a distância entre a Igreja e o largo do restaurante do Mateus da Ponte, onde fará uma pausa para descansar e recolher as hostes, aquela multidão de pessoas, principalmente jovens, que iriam acompanhar o cortejo. Ao longo do caminho parou apenas nos cruzeiros, enfeitados de flores e velas, para uma reza apressada.
Junto ao Mateus da Ponte a paisagem levantava um bocadinho o véu daquilo que o quadro completo teria para oferecer dali em diante. Um grande areal a rodear o rio que se enfiava pelo meio da antiquíssima ponte permitia observar, do outro lado, uma levada cujas águas cantantes escreviam uma música belíssima, imemorial.
Daqui em diante o caminho acompanharia o rio, nas suas curvas e contracurvas, atravessando gargantas rochosas, ladeado pelo verde da vegetação e pelas goteiras da água que deslizavam das paredes e formavam, em certos sítios do trajeto, pequenos lagos e lama, onde as rãs, se o barulho se convertesse em silêncio, poderiam apresentar o seu espetáculo musical.
Ao longo do caminho avistavam-se alguns moinhos de água que não queriam saber dos dias da semana nem das suas regras. O barulho da água e das mós produziam uma canção peculiar, que já vinham cantando desde há muito tempo atrás, mas a que nos habituáramos sem estranheza, passando a fazer parte das nossas memórias.
A comitiva não dava sinais de cansaço. Saltavam daqui para ali e dali para acolá, gesticulavam e riam e num cantar desafinado iam desfiando as modinhas, sempre a caminhar em pequenos grupos, atrás do ruído do sino que conduzia a marcha.
Mais tarde chegariam os atrasados que se viriam juntar aquela pequena multidão formando um cortejo colorido e barulhento. Observar a diversificada fauna que por ali pululava seria impossível, nesse dia, tal era a barulheira que tudo espantava.
A aldeia estava próxima e entretanto alguns iam abandonando a formação procurando um sítio aprazível para comerem o merendeiro, assimilar o encanto da natureza e outras coisas mais.
Passando a ponte romana adivinhava-se agora a aldeia por entre o ajuntamento de carvalhos que antecediam a povoação. As casas formavam um aglomerado, de paredes irregulares, algumas redondas, distribuindo-se ao longo do estreito caminho de terra batida, aproveitando o espaço exíguo numa lógica de defesa, pois aquele povoado isolado no meio da serra fora propenso a muitos ataques em tempos idos. Mais acima palheiros e eiras denunciavam a atividade agrícola que por ali prosperara. Naquela altura ali ainda não havia luz elétrica e à noite, segundo se contava, um manto de estrelas cobria a aldeia num um espetáculo cheio de luz e cor, sem igual, dando aso a diversas lendas que eram contadas de pais para filhos.
Quando entrávamos na povoação éramos transportados para outra época, regredíamos no tempo e a surpresa era total, mas agradável. As colchas de linho, trabalhadas, desciam das pequenas janelas engalanadas de vasos de flores coloridas, dando as boas vindas aos visitantes. Meio escondida pelas casas havia uma pequena capela que apenas abria portas neste dia e onde, depois da bênção às casas, terminava a cerimónia Pascal.
De tarde a malta estendia-se pelos maciços em volta e na eira, tocava- se concertina e cavaquinho e ria-se, ria-se muito! Era ali que se fazia a festa e era também onde se juntavam os valongueiros que desciam e entravam pelo outro lado da aldeia.
Naquele dia celebrava-se a alegria de viver!
Naquela altura os homens ainda não tinham imposto fronteiras e aquela aldeia pertencia a S. Pedro da Cova. Hoje mudou de dono, mas cá dentro continua a ter reservado o mesmo lugar ocupando um pequenino, mas valioso local, dentro do meu coração.
Interessante descrição do que era a Visita Pascal a Couce. Penso que já há alguns anos deixou de se realizar, o que entristece quebrando boas recordações. Hoje o ritmo de vida é diferente e os interesses das pessoas, também. Haja quem escreva com alma e coração bocados do nosso colectivo passado!~
RBF
Coice continua a ser uma bela aldeia, sossego e o encanto das sombras, um lugar para levar uma merenda e explorar á volta, tudo tão selvagem e natural, até às casas velhas em ruína são lindas. Ótima descrição de um lugar sublime.