Endovélico – Quem foi?
– Lino de Castro
No panteão dos deuses da mitologia clássica grega e romana, o nome Endovélico não é mencionado como um congénere daqueles. Desconhece-se efetivamente se este deus ctónico da Península Ibérica era de origem celta ou não. Podia ja ser adorado pelos iberos antes da chegada dos celtas. Contudo, independentemente da resposta, a deus tornou-se o mais adorado pelas tribos celtas na Península, tendo sido no espago que que hoje o Alentejo o seu centro (maior) de adoração. O número de aras, pequenos altares, consagrados à divindade e inscrições epigráficas encontradas em S. Miguel da Mota, no concelho de Alhandroal, são sugestões de prova da veneração que lhe prestavam aquelas tribos.
Outros teónimos semelhantes a Endovélico foram Endovólico ou Enobólico.
Os Romanos, tomando por conquista a Península Ibérica cerca do ano 200 a.C., como resultado das longas guerras púnicas que haviam travado contra os descendentes fenícios de Cartago, não destruíram os símbolos materiais do culto à divindade nem perseguiram os crentes nela, Diversamente, mostraram aceitar adorar (mais) este deus, de nome Endovélico, tornando-o romano pela integração das terras ibéricas no império que estava nascendo a partir da cidade do Tibre, Roma. Aliás, terá sido por volta do século I d.C. que os romanos assistiram à construção de um templo de grandeza assinalável no cabeço de S. Miguel da Mota, em Alhandroal, no qual os devotos puderam adorar e agradecer as benesses concedidas pela divindade.
Esse templo, magnífico, crê-se, foi demolido após a cristianização, corrente religiosa esta que sempre foi muito adversa à prática de outras adorações religiosas não provindas do pensamento cristão. Esta intolerância cristã terá feito com que os materiais aí existentes tivessem sido usados para construir uma ermida, edificada sob a invocação de S. Miguel.
Os séculos passaram e um dia também as paredes desta ermida ruíram, e as suas pedras recuperadas in loco constituíram um extraordinário espólio escultórico e epigráfico, O responsável pela demolição da ermida, em 1890, e a recuperação do referente a Endovélico, foi José Leite de Vasconcelos, o fundador do que é hoje o Museu Nacional de Arqueologia.
Cerca de cem anos mais tarde outro arqueólogo e professor encontraria um santuário rupestre, mais antigo que o templo construído pelos romanos, e onde eles e os lusitanos teriam prestado culto ao deus ibérico.
Segundo as mentalidades e crenças religiosas de há dois milénios, Endovélico tinha largas semelhanças de significado e de poderes com os deuses gregos e romanos. Era um deus dos mortos, ou do inferno, como Hades para os gregos; de cura de doenças, e por isso associado a Esculápio, deus romano da medicina; de profecia, porque procurado também por crentes que pretendiam conhecer o futuro ou interpretar os sonhos tidos – como se o grego Apolo profetizasse, pela voz da pitonisa, no santuário de Delfos; etc.
Contudo, sendo Endovélico para os primeiros cristãos fanáticos um deus de paganismo, dos não crentes na doutrina de Cristo, procuraram de algum modo transformar os ritos e as crenças pagãs. Como dificilmente conseguiam mudar as mentes das pessoas crentes em deuses ancestrais, os cristãos usaram a fórmula de ‘santificação’ de alguns daqueles deuses, adaptando os seus ritos à simbologia cristã. De facto, certos anjos e santos mais não são do que a cristianização de deuses pagãos. Por exemplo, Santo Antão viveu no século IV no Egito, como um eremita. Quem quisesse encontrá-lo tinha que o procurar no deserto. A semelhança: também os deuses celtas tinham de ser procurados na solidão da natureza, como o Endovélico – recordemo-nos da floresta, e árvores específicas, como sendo locais de culto onde os seus prosélitos se reuniam para a veneração, orientados pelos seus sacerdotes, os druidas.
A intenção dos cristãos era diluir as marcas e sinais dos deuses pagãos nos ideais da nova religião vinda do Oriente. Similitudes em crenças em entes divinos existem igualmente entre Endovélico e S. Miguel. Aquele, deus dos mortos e da cura de moléstias; S. Miguel, arcanjo da receção das almas que morrem, e também da cura. Alguns, outrossim, acreditam que Endovélico era um deus de cariz guerreiro, algo semelhante aos cristãos pensarem ser S. Miguel o chefe dos exércitos de Deus na batalha contra Satanás.
Ao longo da história da humanidade muitos deuses foram cultuados, e tantos outros foram esquecidos. Todavia, Endovélico é um ‘Deus’ verdadeiro, pois superou a morte do esquecimento e, apesar das muitas perguntas sem resposta que suscita, continua vivo. Aliás, renasceu com as descobertas efetuadas há cem anos, e continuadas hoje pelo professor Manuel Calado.