– Rui Brito da Fonseca
Houvera feriado ao último tempo das aulas desse dia. Apanhei o elétrico das quatro da tarde, no Bonfim. Puto, de pasta de aluno do liceu, subi no carro, paguei dois escudos de bilhete e enfiei-me na plataforma da frente, junto ao guarda-freio e a três ou quatro operários que regressavam a casa. Era sempre melhor fazer a viagem vendo a paisagem de frente que de uma das janelas laterais. O eléctrico nem ia cheio…
Por alturas de S. Caetano subiu directamente para a frente, junto a mim, um personagem que logo despertou curiosidade aos presentes. Era um homem ainda novo, baixote, de óculos fundo de garrafa, avental branco, tal como barrete na cabeça, portando um açafate de verga, de pouca altura, mas de consideráveis dimensões e conveniente tapado com uma alva toalha. O guarda-freio accionou o cordão de couro, fazendo soar a campainha na plataforma traseira, chamando o cobrador, que se dava pelo nome de condutor, para fazer pagar bilhete ao passageiro e respectiva carga, a qual não era viável viajar nos bancos no interior do veículo, com os demais passageiros.
A marcha do amarelo continuava em para/arranca, no rame-rame habitual, mas o pessoal da plataforma da frente do dez com traço, para S. Pedro da Cova, é que não despegava os olhos da cesta. Foi o próprio guarda- freio que, apesar de lhe ser vedado tagarelar com os passageiros, perguntou à até um pouco cómica figura acabada de entrar o que tinha ali guardado. Logo aquele informou ser vendedor de farturas e que eram à moda de Lisboa, conforme até uma pequena placa presa ao seu avental indicava. De imediato levantou a toalha, mostrando perfiladas umas dezenas de frituras de cor castanha amarelada e com bom aspecto. A viagem prosseguiu e instalou-se um pequeno silêncio, até que um dos operários, mais afoito e eventualmente mais endinheirado, lançou:
– E quanto custa cada uma dessas farturas, não é?
– Uma croa – respondeu o vendedor. Meio escudo não era muito dinheiro, pelo que o corajoso inquiridor, aguardou uns momentos e disse:
– Dá cá então uma, que quero provar – e deu-lhe uma moeda de cinco tostões, cor de prata.
Afanosamente o pasteleiro, levantou de novo a toalha, muniu-se de uma pequena tenaz, escolheu uma fartura, levantou-a levemente polvilhando-a com açúcar e canela de recipientes distintos e, assim mesmo, a entregou ao comprador. Este, de mãos nuas, meteu a fartura à boca, enquanto os restantes basbaques, incluindo eu, apreciávamos num sorrisinho de curiosidade e uma ponta de inveja, por não queremos gastar dinheiro, ou nem sequer ter coragem para experimentarmos a novidade que era uma fartura emigrada de Lisboa para o Porto, onde as gentes estavam mais quedadas ao sabor nada doce das tripas e outros petiscos mais acres.
– Então que tal é isso, a que sabe? – Perguntou um dos companheiros de viagem.
O lambareiro, com forçado ar um nada enjoado, mas sôfrego pelo gosto, mastigava com a boca um pouco aberta e desdenhosamente comentou, enquanto deglutia o último pedaço:
– Heem, sabe aos tomates do Padre Inácio! …
E assim, naquela tarde de um dia de Primavera, do já longínquo Ano do Senhor de 1963, fiquei a saber a que sabem as farturas à moda de Lisboa.
Ortografia utilizada: anterior ao acordo ortográfico de 1990