– Rui Brito da Fonseca
Em passos firmes mas cadenciados apontados nuns sapatos pretos de quase verniz, biqueira arrebitada, Padre Barros subiu o estrado da sala de aula. Virou-se para os seus alunos e proferiu com uma pontinha de entusiasmo orgulhoso, sorrindo nuns olhos pequenos e claros: – Rapazes, para o próximo ano o Colégio vai contar com o Dr. Camboa como professor!
Eu, como qualquer aluno liceal dos anos 60, no Porto, já ouvira falar nessa figura semi-mítica da docência particular. Era um personagem terrível, misto de brutamontes agressivo e excelente pedagogo, obtendo os seus discípulos resultados acima da média, confrontados nos exames dos purgantes junhos, quando a miudagem aluna cada ano se submetia a tão crucial quanto temido acto.
O Camboa era, sem dúvida, para nós o terror desses tempos; apreciado, contudo, pelos papás e encarregados de educação que até agradeciam que os professores despachassem, de vez em quando, um par de lambadas nos seus rebentos.
O Padre Barros, rosto miúdo, tez clara, óculos sem aros mas de hastes douradas, devia esfregar as mãos de contente, já que o concurso dessa novel contratação para o seu corpo docente no Portuense era uma inquestionável mais-valia. A concorrência era vária e de qualidade comprovada: O João de Deus, o Almeida Garret ou até o Universal contavam, se não todos pelo menos a maioria, com o Camboa para ensinar de um modo assertivamente musculado os meninos que não queriam estudar.
Nós, os alunos, uns rapazotes já entrados na puberdade, carregados de hormonas que permitiam uma rebelde energia e até inspiração para a criação autoral a vários níveis. Contudo, com tantos projectos, acabávamos, a maioria, para relegar os livros a lugar secundário. Mas o Camboa iria acabar, pelo menos nas disciplinas por si ministradas, com esse estado de coisas.
Licenciado em Românicas, lecionava português e francês. Ali, no Portuense, apenas dava o português, já que o Padre Barros, director, tinha feudo do francês, impingindo obrigatoriamente La Grammaire Française à Portée de Tous; bem visto, de sua autoria e que na sua inquestionável prosápia, eficaz para a aprendizagem da língua francesa, tanto para o 1º, 2º e 3º Ciclo dos Liceus e até para a Universidade!
Apanhei o Camboa no 5º ano liceal e fiquei a saber cantar como um canário, os Lusíadas, o Frei Luís de Sousa e o Auto da Alma. Fiquei a distinguir na perfeição uma hipérbole de uma sinédoque, uma apócope de uma prosopopeia e, se posso dizê-lo, aprendi a alinhavar menos mal o português, tanto escrito como falado. Mas, tal como a maioria senão a totalidade dos meus colegas, sofri cada vez que levantando-me na sala de aula via entrar aquela figura de homenzarrão alto, espadaúdo, de farta cabeleira penteada para trás tipo pista, envergando um fato e quase sempre uma gabardina pingona creme que fazia companhia a inevitável pastinha, como imagem de marca no competente professor. Usava também uns óculos sem aro numas ventas arreganhadas de poucos amigos, boca de lábios finos, dentadura num nunca acabar de dentes, bem conservado nos seus cinquenta e poucos anos.
O seu humor era uma constante variável, passando repentinamente de uma aparente boa disposição até, caso o aluno interrogado, ou até a turma inteira, a resposta não fosse satisfatória, a um estado colérico, ao insulto, com ameaças de agressão iminente.
Fumava muito usando uma cigarreira de osso, trincando a ponta. Usava uma linguagem que hoje eufemisticamente apodamos de vernácula e nesses tempos de malcriada, tanto no insulto aos alunos como no decorrer de um bem literato texto, surpreendendo com os seus remates. Recordo bem quando quase embevecido e sem olhar para o texto, perorava o Frei Luís de Sousa, de Almeida Garret, entrando nos diálogos das personagens e sem esperar que o aluno mostrasse conhecimento do que teria dito o Romeiro à interrogação de D. Madalena de Vilhena sobre a sua identidade:- quem és tu romeiro? E logo concluía num tom declamatório em resposta à delicada e fidalga dama, supostamente viúva:- sou o caralho!
Muito podia falar do Dr. José Camboa e nas alcunhas, normalmente degradantes, que mimoseava todos os alunos, raramente os tratando pelos nomes próprios. Eu era o bigodes ou o S. Pedro da Cova, já se vê bem porquê. Um outro era o catraio, e suprema humilhação a um colega que não tinha grande jeito para as letras e portava umas grandes suíças, apelidava-o de empregado de moço de lavoura!
Eram tempos da guerra no Ultramar. Apesar de tudo poucos fugiam ao então considerado dever pátrio, mas mesmo entre os mais jovens pairava o receio de um dia irem bater-se tanto em Angola, Moçambique ou na temida Guiné onde a porrada era mais activa. A única perspectiva positiva para os estudantes em adiar melhorando o seu tempo de tropa, era conseguir concluir um curso superior, o que mais ou menos todos aspirávamos. De outro modo, chegados aos vinte anos surgíamos mobilizados inevitavelmente e na maior parte dos casos remetidos para o teatro de operações militares. Toda a gente sabia disso, o Camboa também, e quando a turma na totalidade ou na maioria mostrava desconhecimento da matéria das lições, o professor, levantava-se da cadeira num repente, mudava de cores, vociferando atirava-nos, qual certeira arma de arremesso do alto do seu metro e oitenta e três suportando cento e treze quilos:-Haveis de morrer como cães na Guiné!
Saudoso mestre, obrigado pelo que me ensinaste, mesmo de forma pedagógica pouco ortodoxa mas de resultado comprovado. E apesar das ameaças, insultos e enxovalhos que a todos mimoseavas, num:- olhe que eu arrebento-o, nunca te vi a agredir fisicamente um aluno. O teu aspeto e linguagem chegavam para nos meter na ordem.
Paz à sua Memória, Dr. Camboa.