Liberdade

Liberdade

– Margarida Rodrigues

A primeira vez que ouvi falar em PIDE foi no dia do exame da 4ª classe, três anos antes do 25 de Abril.

O pai de uma colega ia levar-nos de carro até à escola (Escola Primária do Monte Crasto) onde iríamos fazer o exame. A distância era relativamente curta, mas o momento era solene. Estávamos nós sentadas nas escadas do prédio, a aguardar a saída do nosso motorista, quando a Aurora nos disse que, naquele mesmo prédio, mas em outra entrada, vivia “um pide”. Mantive-me atenta aos relatos da Aurora, pois não sabia o significado do nome pide e, depois, muito apreensiva com as atrocidades cometidas pela mesma.

A Aurora sabia do que falava, dizia ela.

– O meu pai teve que fugir para a Alemanha, já foi preso duas vezes!

Sabia que o senhor era gráfico e trabalhava no Porto. Às vezes ia no autocarro com o meu pai. Não sabia mais nada.

Entretanto o nosso motorista saiu, a nossa conversa acabou e lá fomos nós a caminho do tão importante exame que nos esperava. Confesso que estava ligeiramente preocupada e que a narração do “arrancam unhas”, não me saía do pensamento.

Fiz o exame, que correu bem, e no qual tirei uma boa nota. Do nosso grupo de quatro, só a Aurora reprovou. Tinha estado uns tempos na Alemanha e não conseguiu entender toda a matéria…

Nessa noite, durante o jantar, falei sobre o assunto da manhã e ficou bem claro que estava proibida de falar sobre isso, com quer que fosse, pois era muito perigoso.

– Cala-te e nunca mais fales disso, nunca mais, disseram-me.

Logo depois do 25 de Abril soube quem era “o pide”. Era um senhor que eu conhecia bem, tal como à respetiva mulher e filhos. Era um senhor bem simpático, sorriso fácil, muito elegante, conhecido por professor. Na altura, deixaram a casa e nunca mais soube nada acerca deles.

De política eu não sabia nada, a não ser um ou outro comentário ou acontecimento sem sentido para mim.

Lembro-me bem de irmos assistir à inauguração da estátua do Soldado Desconhecido em Fânzeres e atirar papelinhos ao Exmo. Senhor Almirante Américo Tomáz.

– Amanhã temos que ir com a bata bem limpa para a escola.

Estava na praia, quando ouvi no rádio que Salazar tinha caído da cadeira.

– Pode ser que morra, disse o meu tio Zé.

Também estava na praia aquando da sua morte. Dado que na casa de férias não tínhamos televisão, não retive qualquer memória visual desse acontecimento. Lembro-me, também, quando soube da morte de um soldado nosso vizinho que estava na guerra, e de ver a minha tia Ana e a vizinha, a Sra. Laurinda, irem assistir às mensagens de Natal que os soldados enviavam através da televisão. Elas queriam ver os filhos na TV e, no final, beberem café.

Lembro-me, ainda e muito bem, quando a minha mãe fez um jantar de despedida ao meu primo Nelito e de ela lhe ter dado 500 escudos. Iria embarcar para a guerra na semana seguinte!

Confesso que só comecei a ter consciência política e do que era realmente ter vivido em tempos de ditadura, após o 25 de Abril.

A propósito da liberdade, recordo que tinha treze anos quando ocorreu o 25 de Abril de 1974. Fui normalmente para a escola, e aí tive conhecimento que tinha havido uma revolução e que a ditadura tinha acabado. A essa revolução estavam a chamar: A Revolução dos Cravos!

Soubemos que não haveria aulas e, no dia seguinte logo se veria …

Evidentemente que este feriado inesperado foi um grande motivo de alegria. Durante o regresso a casa íamos ouvindo relatos/comentários, indicando que o melhor seria ficar por casa, pois não era certo como iria acabar o dia. Chegada a casa, o rádio estava ligado e a passar notícias sobre o assunto, constantemente. Na RTP as notícias e as imagens sucediam-se! Eram tantas, que parecia que não havia fim

Ficou gravada, na minha memória, a imagem do “Menino do Cravo”.

A minha família não demonstrava qualquer envolvimento com a política, pelo menos eu nunca me apercebi de quase nada.

Uma explosão de alegria e liberdade, passou a fazer parte do quotidiano. Para os que não sabiam nada, como eu, os relatos, entrevistas, reportagens, livros, documentários, exposições, murais, puseram a nu todo que se viveu durante a ditadura.

Há dois anos, aquando da minha visita ao Forte de Peniche, tive a oportunidade de visitar os vários locais onde os presos políticos ficavam e tentar imaginar como foi possível, mesmo assim, alguns fugirem. As rondas pelas salas fizeram-me sentir arrepios e até o cheiro e a sensação de sofrimento, o tal “arrancar de unhas”, me deixaram extremamente impressionada.

Temos obrigação, para com as gerações mais novas e futuras, lembrar que para a alcançar, para termos esta liberdade de que tanto reclamam, foi preciso muito sofrimento. Temos obrigação de lhes lembrar que, por isso mesmo, nunca por nunca se deve regressar ao passado.

Tal, como diz o professor Artur: abril sou eu.

 

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