– Etelvina Sousa Ferreira
Tive a sorte de nascer numa família de abastança mediana, numa terra de mineiros em que imperava a miséria. Vivia com os meus avós, merceeiros, num local em que poucos tinham rádio e, mais tarde, na época em que a televisão era a preto e branco, também foram os primeiros, no lugar, a comprar uma televisão.
Naquelas tardes de 1955, tinha eu oito anos, em que não importava o tempo que fazia, pois não me lembro minimamente se estava frio ou calor, ou, sequer, se fazia sol ou chuva, as mulheres e algumas jovens entravam pela porta da mercearia e sentavam-se nos dois bancos corridos, de madeira, colocados las laterais da sala, para além do balcão, onde, quase diariamente vinham comprar o pouco que podiam, quase sempre para apontar no “livro dos fiados” e a pagar quando os maridos ou pais recebiam a “féria”. Algumas ficavam apoiadas nas paredes, nos cantos, por falta de lugar onde sentar-se, pois era proibido interporem-se no caminho do som proveniente do rádio que se encontrava colocado numa prateleira do lado de dentro do balcão. Pensavam que o som se propagava em linha reta e não em ondas sonoras!
Ao fim da tarde, não sei precisar a hora, tudo no mais profundo silêncio, rodava-se o botão mágico do rádio, e aguardava-se religiosamente a transmissão do folhetim que passava na Rádio Graça e no Rádio Clube Português. Estava prestes a começar o folhetim radiofónico “ A Força do Destino” ou, melhor, como todas lhe chamavam, “A Coxinha do Tide”. O silêncio era de ouro e havia quem virasse a cabeça, ouvido direcionado diretamente para o rádio, a fim de que não perdesse uma palavra, uma vírgula, um ponto final, ou melhor dizendo uma pausa, uma interrogação.
O programa começava com um anúncio comercial, uma canção, à boa maneira americana, porque o patrocinador era o primeiro grande detergente industrial, o “Tide”, lançado em Portugal numa altura em que se começou a usar o detergente em pó, após séculos e séculos de uso do sabão.
“ Ó minha senhora, agora sem demora, dê a todo o seu lar limpeza Tide. Tem brancura de primeira e limpeza verdadeira, com certeza, porque tem limpeza Tide”. Era esta a cantiga inicial do programa acabando depois do episódio com a mesma cantoria.
Foi assim que a marca ficou registada na cabeça dos ouvintes onde ainda persiste nos dias de hoje.
O argumento baseava-se na história de uma mulher, coxa, discreta e humilde, por quem se apaixonou o galã da novela, um médico casado com outra mulher de caráter bem diferente, má, egoísta, gastadora e que era prima da primeira. Na altura, após trezentos episódios, tudo acabou em bem pois o médico operou a perna da mulher defeituosa que, mais tarde, até veio a casar com ele, após a morte da primeira esposa, e dessa união resultou uma filha abençoada.
As mulheres, na mercearia, seguiam religiosamente os episódios diários e as bocas só se abriam, num berro, para fazer calar os homens, poucos, mas barulhentos, que se juntavam na tasca para beber uns copos ou jogar às cartas, numa sala que ficava mesmo ao lado.
O sucesso popular foi de tal ordem que no dia do nascimento da criança fizeram chegar à estação roupas para bebé e os atores eram abordados através de cartas ou na rua com aplausos ou ameaças, para o bem ou para o mal.
Não sei se este programa teve tanto sucesso noutro lugar, em todo o Portugal, como ali, naquele lugar, mas havia uma razão para que tal acontecesse. Bem perto da mercearia vivia uma rapariga com os seus vinte anos que não tinha as duas pernas desde a nascença. Deslocava-se apoiada nas duas mãos, com almofadas, sentada numa tábua de madeira. Apesar da sua deficiência, mais velha que eu, executava as tarefas domésticas com agilidade e, no lugar, todos a víamos como uma pessoa normal. Não sei se foi pela força da história transmitida pelo folhetim ou, quem sabe, se o autor da peça viu ali uma inspiração, o certo é que esta mulher guerreira realizou aquilo que muitas desejaram e não foram capazes: casou, teve quatro filhos que criou e a sua deficiência nunca a impediu de ser feliz e avançar pela vida fora, indo para além do seu papel, na vida que as “Parcas” lhe destinaram, influenciando o seu próprio destino.