Memórias transversais – o circo da minha infância.

Imagem: “A Família de Saltimbancos” – Pablo Picasso (1905)

 

– Etelvina S. Ferreira

Com o fim do Império Romano e o início da Idade Média, no século V, trupes de mímicos, ventríloquos, ilusionistas e equilibristas, entre outros, começaram a surgir em feiras e praças pela Europa e o seu meio de subsistência dependia dos donativos da assistência. Durante a Idade Média estes espetáculos foram proibidos pela igreja, mas nunca desapareceram completamente, principalmente nas cortes e nos castelos, tendo até desenvolvido grande importância nas feiras medievais.

Antes da proliferação do espetáculo circense na Europa a China já usava esta arte como mecanismo de guerra, ou seja, acrobacia como treino de habilidade e força. É isto que nos revelam as pinturas antigas com cerca de cinco mil anos de existência.

Este espetáculo dos saltimbancos como divertimento de rua, perduraria no tempo até aos nossos dias, à data da minha infância, mas hoje, com o advento das novas tecnologias, desapareceu completamente, apenas permanecendo na memória dos mais velhos.

Não me lembro o dia, nem da hora, mas a imagem dos figurantes a surgirem lá em cima, na curva, contra um céu azul claro, pontilhado de nuvens brancas, ocupou a minha memória de infância e escolheu um cantinho seguro dentro do meu coração para nunca mais de lá sair. Picasso teria pintado o mesmo quadro uns anos antes, mas nessa altura eu desconhecia a Arte e nem sequer sabia da sua existência.

Ao som dos bombos e de outros instrumentos o grupo avançava, caminho abaixo, e as crianças corriam eufóricas para um e outro lado, galgando muros e outras elevações, para melhor visualizarem aquele estranho agrupamento de seres vindos de “outros mundos”, outras paragens.

Os figurantes não eram muitos, cerca de meia dúzia, mas a sua grandeza não estava no número, mas sim na novidade das cenas, antes nunca vistas, principalmente pelas crianças, e que a todos tiravam ais de admiração e gestos de mãos na boca arrancados com medo e surpresa.

O arlequim com as suas vestes aos losangos, de cores coloridas, era uma das figuras principais e que desde o início captava a atenção, mas a menina que toda se contorcia em cima de um tapete, era, sem dúvida, a figura mais admirada, mesmo para além do trapezista que habilidosamente trabalhava apoiado na corda suspensa por duas hastes de madeira.

O sucesso da menina contorcionista foi tão grande que nos dias posteriores àquele evento as crianças tomaram como única brincadeira o exercício constante das figuras por ela executadas com mestria, a tal ponto que algumas de nós, poderiam perfeitamente ser integradas num espetáculo circense onde, com certeza, faríamos um enorme sucesso.

Lembro-me especialmente daquele exercício em que ela se apoiava no chão com os pés e as mãos, de barriga para cima, e depois, lentamente ia aproximado os pés até conseguir chegar à cabeça, feita uma enorme bola redonda.

Não sei se foi imaginação minha ou um desejo profundo, mas ao fim de algum tempo de treino, eu já achava que conseguia fazer o mesmo que a famosa contorcionista. Pena foi que algum tempo depois abandonei os treinos. Outros interesses, novos mundos, novas descobertas.

Hoje já mal chego com as mãos aos dedos dos pés, na posição normal dum ser humano, nada de contorcionismos. Falta de treino, talvez!

 

 

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