“Não-me-esqueças”[i]
– Maria José Moura de Castro
O cuco e a poupa faziam-se ouvir a grandes intervalos, só os rouxinóis dialogavam sem fim. De que falariam? De que falariam? Diziam os entendedores de aves que, naquele dia, o tema da conversa era Fabrício, o sapo maestro.
Conta-se que Fabrício era muito especial, nascido para altos “saltos” até. Nascera no seio de uma grande e feliz família, maioritariamente de sapos. Uma família cantante, ou seja, com a música no coração, como a família Von Trapp, aquela do filme musical. Até as suas irmãs rãs pareciam cantar. E, vejam só, julgavam-se autênticas divas.
O sapo Fabrício era grande e reboliço, mas brilhante, literalmente e em todos os sentidos. Desde cedo revelara um dom para dirigir o coro da família. Ele era o elo entre as suas próprias composições e os cantores. Mantinha todos os planos sonoros de uma obra sinfónica em uniformidade rítmica e expressiva.
“A regência atinge a sua plenitude quando se liberta da uniformidade rítmica e emerge da imaginação criadora do intérprete numa descrição altamente expressiva da obra.” Assim, citava Baptista (uma das suas figuras inspiradoras), 2000:79. E acrescentava:
– Cabe ao regente descrever em gestos expressivos a sua interpretação, de maneira a induzir no cantor o que ele concebeu para a obra musical. Fabrício, regente e compositor, inspirava-se na natureza circundante. Era ela a sua musa, o seu refúgio. Vivia no Parque Das Serras co Porto, o “pulmão verde”, formado por Santa Justa, Pias, Castiça, Santa Iria, Flores e Banjas, e os Rios Sousa e Ferreira. Ele espraiava o seu olhar pela beleza das suas paisagens, por montes e vales, rios e ribeiros. À sua volta, cresciam Gondomar, Paredes e Valongo.
Habituara-se a galgar este espaço diariamente. Cada dia, fazia novas descobertas. Era como se tivesse um compromisso consigo mesmo e com o parque: conhecer um recanto por dia, a sua fauna e a sua flora. E, quando regressava ao seu húmido lar, no pequeno ribeiro límpido, situado em Santa Justa, ia inspirado para criar novas composições. Sentava-se na sua flor-de-lótus, fechava os seus olhos, inspirava e expirava, e dava a conhecer ao coro que regia a sua nova sinfonia. E a sua energia era contagiante e revigorante. A harmonia era geral. Era a festa da vida.
Fabrício adorava as flores silvestres pela sua paleta de cores, formas e odores, e as suas danças com o suave vento. As belas flores de tuberária-mosqueada, as campainhas…. As árvores, os arbustos e os fetos… Para ele, eram a simbologia da sua liberdade. Assim como adorava a sua flor-de-lótus, em que se sentava a reger o seu coro.
Era uma flor que florescia em busca da luz, em busca de uma promessa de pureza espiritual, em busca de elevação. As flores eram a sua perdição. Por outro lado, os campos floridos atraíam abundantes e comestíveis insetos.
Adorava, especialmente, as urzes, também denominadas de torgas dos montes, que coloriam o Parque das Serras de um lilás sonhador que convidava a dançar, cantar, correr, estender-se e confundir-se com aquele cenário paradisíaco, do tamanho do mundo. Parecia que a terra o massajava. E pensava “A felicidade existe!”.
Quando estava assim encantado, quase se atrasava para o seu ensaio diário. Mas, graças à sua capacidade de saltar sobre longas distâncias, num coaxar, regressava ao seu lar. É que, como já nos apercebemos, Fabrício não era um sapo comum, tinha patas compridas e saltava bué.
Habitualmente, as suas sinfonias decorriam ao pôr-do-sol, já com a temperatura a baixar e a humidade a subir. Eram tão melhores quanto o seu estado nutricional. Nem só de alimento espiritual vivia Fabrício, o sapo. Pois! Também amava os insetos, aranhas e minhocas. Tinha-lhes um amor mais alimentar. Que o desculpassem, mas era a lei da natureza. Já ele, fugia a altos saltos dos seus predadores.
Desejava longa vida ou, pelo menos, queria cumprir a expectativa de vida de um sapo, entre os 12 / 15 anos. Ora essa! Tinha muito a fazer ainda. Nomeadamente, conhecer e abraçar uma rã-ibérica e por aí fora…
Ora, certo dia, Fabrício, o sapo, numa das suas andanças foi parar à Senhora do Salto, em Aguiar de Sousa, no concelho de Paredes. E, como não podia deixar de ser, foi conhecer não só a sua capela, mas também a chamada Boca do Inferno, pois apesar do nome ser repelente, ele sentiu-se atraído. A razão dessa atração devia-se talvez ao facto de ser um local místico porque, reza a lenda, que um cavaleiro se livrou da morte ao invocar a proteção da Senhora, após um salto inadvertido no abismo. Em sinal de agradecimento pelo milagre, o cavaleiro terá mandado construir a pequena capela da Nossa Senhora do Salto, motivo que deu a este parque o nome de “Senhora do Salto”, que escondia ainda outros encantos. Assim, ao longo das margens do rio Sousa e dos seus afluentes, quem por lá andasse podia encontrar galerias de amieiro, freixo e salgueiro, ao mesmo tempo que carvalho-alvarinho, pilriteiro, sanguinho e loureiro. Já nas escarpas esculpidas pelo rio Sousa, Fabrício deliciou-se com ambientes húmidos de uma variedade de fetos bem como de um tapete de musgos. Mas nem imaginava um susto que estaria para vir… Quando se aproximou a hora de regressar a casa, entusiasmado e imbuído pelo espírito do lugar, excedeu-se no salto que deu, e foi parar, não a Santa Justa, mas à Encosta do Douro, precisamente em cima da cabeça de uma linda menina que se encontrava a dormitar, numa rede, à sombra, no seu belo e grande jardim.
Esta acordou sobressaltada e a gritar:
– Tira, tira, tira! Mãeeeeee!
E a mãe acorreu:
– Que aconteceu, Mariana? Ah, tens um sapo na cabeça! Calma, filha, calma! É só um sapo!
Fabrício não gostou da expressão “É só um sapo!”. Ele, só um sapo?!
Não senhora, era o sapo Fabrício, maestro e saltador. Dos melhores, se não o melhor, embora no momento se sentisse debilitado. Que se estaria a passar com ele? Rapidamente, encontrou a resposta.
– Coitado, Mariana, repara, partiu uma pata. Precisa de cuidados.
A menina, já recomposta do sucedido, apressou-se a apoiar a mãe no tratamento do sapo.
-Então caiu nas mãos certas, mãe. Ou direi cabeça? – E desataram a rir-se.
Ambas gostavam dos animais e preocupavam-se com as questões ambientais. Eram pessoas sensíveis, com alma de amantes da natureza. Volta e meia, faziam caminhadas pelos parques circundantes, incluindo o das Serras do Porto.
Entretanto, na Santa Justa, a família e os amigos de Fabrício estavam preocupados com o seu atraso.
– Que lhe terá acontecido? Nunca se atrasou nos seus horários.
Sempre foi cumpridor.
– É verdade. E já é tão tarde! Costuma vir muito antes dos pirilampos aparecerem, e eles já andam aí a piscar. Vai perder também este espetáculo.
Os sapos e os pirilampos de Santa Justa tinham uma espécie de tratado de paz que se baseava no respeito pela performance de ambas as partes, ou seja, aliavam-se no espetáculo noturno: os sapos cantavam num cenário de luz proporcionado pelos pirilampos. Era duplamente mágico!
Comer pirilampos não constava na ementa dos sapos, nem mesmo sem querer, como aconteceu uma vez ao Fabrício. Estava ele a cantar e, de repente, engoliu um pirilampo. Imediatamente se acendeu uma luz no interior do seu estômago. Parecia um sapo lanterna.
Todos ficaram estupefactos, à sua volta. Até que um deles se lembrou de lhe saltar para as costas e, num ápice, ele expeliu o dito cujo. Alívio geral. História com final feliz, para poderem contar mais tarde, entre risos.
Os dias foram passando, e nada de Fabrício. Por fim, decidiram que não podiam deixar de cantar, ele não iria gostar. Mantiveram os ensaios e concertos, mas os maestros iam rodando, nenhum conseguia suprimir a sua ausência, fosse por défice ou por exagero. Falhava a perfeita harmonia. Faziam o que podiam.
Entretanto, lá longe, crescia a amizade entre Fabrício e Mariana, mas também a saudade. Naturalmente, todos somos livres de a sentir.
Mariana tinha reservado um lugar privilegiado para Fabrício, no seu jardim: um pequeno chafariz, provido de várias bicas, de onde jorrava água, que era um som que ele adorava. Além disso, ela fazia-lhe muita companhia e cantava para ele. Até parecia adivinhar quais eram os seus gostos, tal era a sua conexão. E, ele, embalado, cantava também.
Por vezes, pelos recantos do jardim, saltava e também a observava, a imitá-lo nos seus saltos. Ela chamava-lhe a postura de sapo, em Yoga. E divertiam-se.
O jardim era um espaço húmido, com um lago, pinheiros, arbustos e ervas, e pouco iluminado, pelo que até atraía os pirilampos. Convidativo, sem dúvida. Mas não era a sua casa.
Entretanto, um mês já se passara, e quanto mais tempo ficasse, mais lhe iria custar a partida. Estava curado e pronto para o seu regresso.
No dia da sua partida, Fabrício dedicou à sua amiga Mariana uma canção especial: “Sentir saudade”. Na verdade, também já começava a sentir saudade dela. E a menina pressentiu. E a menina compreendeu. Então, ele invocou a Nossa Senhora do Salto e pediu para desta vez conseguir acertar no destino. E, à hora habitual, apareceu em cima da sua flor-de-lótus, pronto para dirigir o seu coro, que o recebeu entusiasticamente e cantou melhor do que nunca. Desta forma, parece que ainda se ouve “We all stand together”, debaixo de um céu pirilâmpico.
[i] Conto publicado na “Coletânea Contos das Serras do Porto” editada em novembro de 2023 por “Letras e Melodias”.