O Guarda da Noite

Rui Brito Fonseca

A noite era um gelo como o são as noites em janeiro. O fogareiro, atestado e aceso pelo mano que há pouco arreara e a quem viera render, estava quente e, em seu curto redor, havia calor.

Vareiro tinha pegado às dez no turno e só arrearia às seis da manhã. Eram oito horas más de decorrer, e o que valia era poder passar pelas brasas a intervalos.

A partir das dez o movimento nas minas quase parava. Acabava o trabalho para a maioria dos operários e, normalmente, as mulheres que trabalhavam no Alto do Gódio, eram as últimas a passar por si, a caminho de suas casas. A função do Vareiro era estar de plantão, em guarda das instalações mineiras, não deixando que nelas entrassem estranhos que, a coberto da escuridão, viessem pifar coisas com algum valor ou dessem jeito e, principalmente, olhar para que o paiol onde se arrecadava a dinamite não fosse assaltado.

Também revistava, se desconfiasse, quem passasse pela sua saída. Poucas vezes o fez e nunca topou qualquer coisa desviada. Apenas certa ocasião mandou que a Ana, viúva como ele, mostrasse o tacho do comer que trazia, destapando o testo. Nada encontrou, mas aquela não perdeu ocasião e, num gesto de irritado desprezo logo lhe perguntou se não queria procurar noutro sítio mais quente… ou ali…e abriu a blusa a mostrar o branco do seio. Embatocado, a cena ficou-lhe de emenda e o Vareiro nunca mais quis nada com ela, ou com outra das suas companheiras.

O silêncio instalara-se no negrume da noite, só a espaços quebrado por algum eco do trabalho dos bombeiros que, em permanência, acautelavam que a água das minas fosse esgotada. Há muitos anos já que a mina rolava todo o dia e noite, através da central elétrica, o cabo aéreo com as cestas para o Monte de Aventino e os três turnos de mineiros. Mas isso fora durante a guerra, agora tudo estava mais parado…

Tossiu com insistência de uma bronquite cavernosa. Trabalhara mais de trinta anos no fundo, principalmente nas marcas roins e nas profundezas do Poço da Pedra. Tinha os pulmões queimados pelo pó e já não aguentava aquele trabalho pesado. O doutor recomendou serviço mais leve e foi assim que chegou a guarda, e por lá ficará até aos sessenta e cinco, para se reformar, se não for fazer tijolo, antes.

Barrete enfiado na cabeça, ornado com as letras da companhia das minas a amarelo. Roupa bem coçada, que destoava de um grosso sobretudo sem cor, de espinha, com bom corte, apesar de quase em fio nos cotovelos. Fora o antigo Sr. Diretor que lho mandara dar há vários anos. Embora já usado, era o que lhe valia para aguentar o briol. Ao canto da casota onde se abrigava da chuva e vento, tinha, encostada, a velha caçadeira de dois cães e, no bolso, um par de ensebados cartuchos. Nunca dera um tiro, era só pra meter respeito! Num contíguo e pequeno coberto, por causa do tufo que o fogareiro provocava, sentava-se no banco a aquecer-se e ali “ferrava o galho”, ainda que de forma agitada, pois o Ronda podia aparecer a qualquer momento. Este usava um barrete como o seu, mas com duas estrelas doiradas e como, dizia o próprio, não conseguindo dormir, vinha rondar os guardas para ver se se encontravam acordados, em vigia.

A noite estava mesmo fria, já os campos e planuras ali defronte se notavam esbranquiçados. Não era a foleca, mas neve do rol gelado. Sem luvas, ia batendo as mãos calosas e disformes, marcadas por uma imensidão de riscos e pontos azuis, resultado das feridas do carvão. Tinha ceado antes de vir pegar o trabalho, mas trazia um saquito com um bocado de pão de milho e uma fatia de carne gorda entremeada, que dava para entreter a fome. Também tinha um coco onde, no fogareiro, aquecia café, este distribuído pelas mulheres que o faziam para o pessoal do interior. Num pequeno frasco trazia, disfarçada, uma cachaça, que o aquecia por dentro e o fazia sentir-se mais ajeitado.

Deu uma volta perto dos escritórios e nos terreiros. Não havia novidade… Ia batendo com os pés no chão para não esfriar mais. Aproximou-se de um lampião, sacou do bolso das calças a cebola e, à mortiça luz, viu no seu desgastado Guadiana que eram três horas e meia. Ainda faltavam mais duas horas e meia para deixar o serviço e ir para casa, lá para os lados de Tardariz. A essa hora entrava pro fundo o primeiro turno de pessoal, acordado às cinco da manhã  pelo apito que tudo estremunhava. Para isso havia um seu colega, lá em cima, na casa das máquinas, junto ao cavalete de S. Vicente, que puxava a alavanca às horas indicadas. Só mais tarde vinha o pessoal das oficinas e terreiros e pelas 9 chegavam, aperaltados de casaco e gravata, os mecos do escritório.

…Sabia que na noite seguinte o esperava o mesmo. Pra semana é que mudava pro turno de dia…sempre era mais leve e permitia umas larachas com os colegas e conhecidos, ao mesmo tempo que se aproveitava para umas pequenas negociatas de trocas de isqueiros, relógios baratos e outras miúdas fancarias.

…O Vareiro não alcançou a esperada reforma. Um ataque na bomba do peito fê-lo embarcar para a inexistência, mais cedo.

…Mas, para mim, continua vivo. Na memória chego até a ver os seus sorridentes olhos irrequietos e a escutar a flauteada voz, quando, nos meus arrumos, topo, ao canto da gaveta, um negociado e envelhecido Guadiana.

 

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