Oficina Fluvial
Texto de Manuel Araújo da Cunha
A estrutura montada na margem direita do rio Douro na alameda que nos conduz à beira da água, cercada por arvoredo, em Melres Gondomar, denominada Valboeiro – Oficina Fluvial, é tão simples, humilde e simultaneamente grandiosa, como os obreiros deste importante e maravilhoso projecto. Porque a dimensão de uma criação, não se mede pelo tamanho da área geográfica que ocupa, mas sim pela parte sentimental, que vibra nos corações dos homens de boa vontade que a implementam.
O cenário já quase flutuante, que dezenas de crianças, a maioria alunos de escolas das redondezas e também pessoas adultas, algumas vindas de longe, tiveram a rara felicidade de apreciar, foi uma escola viva montada na margem direita de um rio que merece de todos um olhar afectuoso e muito mais atento do que o esquecimento por parte de quem tinha o dever de o proteger das traiçoeiras cobiças do mundo. O testemunho de que a obra nasce quando homens, da têmpera do professor Artur Sousa, impulsionador e docente na Universidade Sénior de Gondomar que ajudou a criar, reúnem todos os meios na concretização dos seus sonhos, em prol da humanidade, esteve ali a afirmar-se à vista de todos, durante vários dias.
O que nos eterniza como povo é a preservação das memórias coletivas. Quando conhecemos as nossas origens, tornamos possível a reconstrução dos hábitos, usos e costumes de civilizações que nos precederam, e eliminamos o ultraje do esquecimento por parte das gerações futuras.
Artesões, carpinteiros e calafates, homens que sabem preservar as artes dos seus antepassados, executaram manualmente com a apurada perfeição requerida pela geometria e pela física, esta tarefa de construção de navios já quase esquecida por todos os vivos, utilizam ferramentas de marcenaria e carpintaria usadas nos grandes estaleiros navais, onde as Caravelas dos descobrimentos foram construídas. As mãos rugosas que, com a ternura que deles brota e apenas na intimidade expressam, acariciando os cabelos de quem amam, dos filhos e dos netos, redobram-se em sábias e precisas passagens pelas modestas pranchas de madeira desta região, que se vão transformar numa embarcação que o rio Douro conhece como mais nenhum.
Noutros tempos, havia centenas deles e eram no imaginário dos poetas, naus carregadas de poemas, pássaros coloridos que flutuavam, livres como o vento, nas suas doces águas.
Os olhos dos artistas, ao perscrutar o primor da obra, possuem uma luz magnífica, porque são eles os guardiões da ciência que produz maravilhas no captar com rigor, a arte e o engenho de povos ancestrais, que para aqui vieram fazer este rio navegável.
– É apenas um barco dizia alguém enquanto examinava o trabalho já quase concluído!
Sim, é apenas um Valboeiro, um barco que vem do tempo do povo Fenício e é capaz de nos transportar até aos dias em que muitos milhares de nós, povo ribeirinho, fomos crianças felizes. A navegar num rio que continua a ser a razão por que os nossos bisavós se fixaram nas suas margens e o nosso maior e querido dos orgulhos.
( Artigo publicado em CORREIODOPORTO.PT)
Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do Douro; Douro Inteiro; Douro Lindo; A Ninfa do Douro; Palavras – Conversas com um Rio; Fado Falado – Crónicas do Facebook; Amanhecer; Barcos de Papel; Casa de Bonecas e Crónicas de outro Mundo.