Apelidos e Maneiras de Ser ou Estar
– Margarida Rodrigues
No decorrer de uma caminhada à beira mar e em amena conversa, apercebi-
me que isto dos apelidos de família nos pode levar à descoberta de mais e
mais pessoas, só sendo preciso estar atento e fazer as ligações certas.
Como diz a canção do Luís Represas, “Há sempre alguém que nos diz tem
cuidado, há sempre alguém que nos faz lembrar um pouco, há sempre alguém
que nos faz falta, ai saudades”
A tia Zira era uma mulher alta, de porte elegante e sorridente. Vestia-se de
forma simples, mas sempre aprumada. Tia por parte do pai, uma simpatia,
muito gostava eu da tia Zira! Vivia numa casa bastante pequena, um pouco
acima da casa dos meus pais. A casa, apesar de simples, era bastante
acolhedora e sempre a cheirar muito bem. Em cima do guarda fatos havia
maçãs que comprava no São Simão – que duravam uma eternidade – e que
exalavam um cheiro subtil, mas delicioso.
A tia Zira, ou sra. Alzira Fiteira, enviuvou muito nova e ficou com dois filhos, um
rapaz e uma rapariga. Mulher de parcos recursos, nunca se lhe ouviu um
queixume sobre a sua vida.
A verdade é que viveu sempre para aqueles dois filhos. Feitios bem diferentes
entre eles e aspeto físico também A filha, de estatura baixa, a contrastar com o
irmão que era alto e conhecido por Zé Fiteiro.
Acontece que este meu primo, que era uma cópia do meu pai apesar de
ligeiramente mais baixo, era um regalo para os olhos femininos. Rapaz com
bom porte, elegante e muito charmoso, olhos e cabelos escuros, pele de
aspeto trigueiro e mãos compridas, uma das características físicas dos Fiteiros.
Tinha mais dois anos que a minha irmã mais velha e era afilhado dos meus
pais. Mas a característica principal era a sua alegria e boa disposição.
Saía à raça dos Fiteiros, era um charme de rapaz, que despedaçava corações,
deixando por onde passava um rasto de paixões e paixonetas.
A tia Zira tinha muito orgulho naquele filho, que emanava simpatia por toda a
parte.
– Ai sra. Alzira, o seu Zé é tão engraçado e bonito.
Mas a tia também sabia que havia muitas queixas por parte de algumas
raparigas, ou dos pais. Só que fingia não perceber.
Ao domingo de manhã, e regressadas da missa das oito, lá ia a tia a nossa
casa. Tomava uma chávena de cevada e comia um bocado de regueifa. Os
meus pais faziam questão que assim fosse, e também para passar
primorosamente a ferro a roupa do rapaz.
– Bina não te importas? Já sabes como o vosso afilhado é vaidoso, e como tens
ferro elétrico é bem mais fácil!
Passava impecavelmente toda a roupa, mas então as calças e as camisas,
com os vincos muito bem feitos, ficavam um esmero para o rapaz sair e fazer
chorar os corações femininos. Cabelo com bom corte, unhas impecáveis,
sapatos a brilhar e nó de gravata sempre um esmero (estas duas últimas
tarefas eram feitas pelo meu pai, que gostava imenso daquele sobrinho e
afilhado, e tinha um jeito especial para isso).
Eram uns vaidosos essa rapaziada de então.
As raparigas bem penteadas, unhas pintadas, roupas com bom corte, estavam
prontas para sair após o almoço com as amigas e amigos da mesma idade. O
local de encontro era no café Paris, no largo do Souto, e daí saiam para outros
locais.
Fiteiros, Fidalgos, Mouras, Canastras, Capadores e Bagulhos eram a
coqueluche da altura.
Eu acompanhava muitas vezes a minha irmã. Era novinha e, pelo que diziam,
nada chata e por isso tinha essa autorização.
– Em casa, não contas nada, senão…
Fui tantas vezes a casa destes amigos a acompanhar a minha madrinha, vezes
sem conta à casa dos Fidalgos, que viviam um pouco acima da nossa casa,
com o propósito de arranjar os mais variados botões para a roupa. A casa era
bonita, bastante grande, com um portão enorme de ferro, uma ramada de
glicínias e uma enorme roda de poço. Uma família com vários filhos, que
tinham uma fábrica de botões na casa.
Encontrava lá muitas vezes o meu primo, que era grande amigo do filho mais
novo dessa família, inclusivamente trabalhavam juntos no negócio dos botões.
Pegavam em mim ao colo, atiravam-me ao ar, uma festa autêntica. De lá, trazia
alguns botões com figuras de cerejas, de bonecos e de animais, que tinham
defeito. Desse tempo, ainda conservo uma fivela com pérolas coladas que me
ofereceram os rapazes “para a tua mãe usar quando te fizer um vestido novo“.
Rapazes irreverentes, na época tiveram necessidade de travar novos
conhecimentos e ter novas vivências, pelo que, após o regresso da guerra do
Ultramar, rumaram a outros países, embora acabassem por regressar à sua
terra natal.
Tinham fama de pândegos e cantadores de serenatas às raparigas. O Zé
Fiteiro herdou essa faceta do padrinho, o meu pai, que gostava muito de
música e andava sempre a cantar, e fez muitas serenatas, o que não agradava
lá muito à minha mãe.
O pai e a tia Zira contavam as travessuras que faziam para assustar os
transeuntes que de noite passavam na zona onde viviam quando jovens. Sem
iluminação pública, divertiam-se colocando lençóis na cabeça a esvoaçarem e
em vassouras abóboras com velas dentro, emitindo sons estranhos, gritos,
dando azo a que as pessoas vissem fantasmas e a realmente sentirem medo
de por lá passar.
Os meus pais, ela introvertida e senhora do seu nariz, ele alegre, divertido e
cantador, formavam um bonito casal, com feitios opostos.
Após as aventuras, desventuras, estes dois rapazes, encontraram as suas
paixões, casaram, tiveram filhos, tornaram-se bons pais de família e
continuaram amigos para a vida, apesar de mais separados. – é preciso
conhecer o mundo, novas experiências, abrir horizontes.
O Zé Fiteiro foi viver para o Porto, mas vinha muitas vezes visitar a mãe, a
quem nunca deixou desamparada até ao final da vida, e também visitar a
madrinha. Era um rapaz grato. Eu estava encarregada de lhe telefonar caso
fosse preciso alguma coisa com a tia.
– Guidinha faz-me esse favor, e assim o fiz até ao dia em que teve que ir para o
hospital, e de lá regressou para casa do filho durante quinze dias, e aí morreu.
Até na doença não deu trabalho, partiu com dignidade, acompanhada do seu
querido filho e da família. Mantenho na agenda o número do telefone dele,
escrito literalmente assim, Zé Fiteiro.
– Tia Bina, no próximo domingo venho buscá-las e vamos almoçar a … ou a
minha casa.
– Não é preciso Zé.
– Eu é que sei, dizia o Zé.
De regresso a casa, falavam sobre as novidades do dia e pouco mais. – O
vosso primo nunca mais ganha juízo. É Fiteiro e tem bem a quem sair!
A minha mãe, apesar do modo de ser bem diferente da tia Zira, era bastante
sua amiga e tinha muita atenção a alguma necessidade que a tia precisasse.
Além de lhe costurar alguma roupa, fazer uma ou outra camisola, xailes ou
cachecóis, também não deixava de partilhar alguns legumes, meio frango para
fazer uma canja e um arroz malandrinho como ela gostava.
– Vai levar estas tostas à tia, para tomar com um chá ao deitar, e ela amanhã
que venha para nossa casa, come uma sopa, e preciso que me ajude a
desmanchar umas coisas.
Era a forma que tinha de a ajudar sem se fazer notada. A tia Zira passou muito
tempo na nossa casa, sabia quando devia ir embora, de forma a não perturbar,
não queria ser incômodo para ninguém.
– Tenho umas peças para apanhar e depois quero ouvir o terço, Bina.
– Zira, leva este pratinho de aletria, que é pena estragar-se.
De facto, a minha mãe teve sempre uma maneira peculiar de estar na vida e
deu-nos o exemplo da independência, o autocontrole, a partilha e a ajuda sem
espalhafato, como dizia.
Nunca conheci nenhuma doença grave ao meu primo Zé e a sua morte
apanhou-nos desprevenidas. A minha irmã e sua companheira de muitas
aventuras ficou muito abalada com a sua partida.
– Lá foi o último Zé Fiteiro, era igual ao nosso pai.
– Não Ana Maria, o teu filho e o teu neto do meio têm tantas semelhanças com
os Fiteiro … Um até se chama José e até o gosto pela música eles herdaram.
Fiel aos seus princípios, a minha mãe nunca aceitou quando lhe chamavam a
senhora Bina Fiteira.
– Eu não sou Fiteira!
Lembro-me tantas e tantas vezes … gostava de ver juntas as duas cunhadas.
As memórias a dar essência à Vida!
Adoro estas lembranças da Margarida. Dão vida à vida!