Coisa Rõe…

Imagem: Mosaico romano – “Conhece-te a ti mesmo”.

 

Coisa Rõe…

– Rui Brito da Fonseca

Em tempos idos, mas não muito distantes, em que as gentes eram na maioria analfabetas, muito pouco letradas ou com falhas de consciência crítica, o convívio familiar à roda da mesa após a ceia era o local onde se trocavam tricas, se falava das novidades e se comentavam os pequenos nadas. Havia, porém, quase sempre espaço para o imaginário em que a crendice pelo inexplicável fazia espevitar a atenção dos presentes, especialmente dos mais novos.

Nas noites compridas de inverno, com o sol a esconder-se cedo, recolhidos ao abrigo precário do frio, vento e chuva que fustigavam lá fora eram o cenário composto para se falar em coisas do outro mundo.

Na igreja, a fé era refrigério para as coisas não compreendidas, mas aceites como verdade. No entanto, as acções do demónio, do malvado, eram alimentadas fora da religião em manifestações do inexplicável, como “coisa rõe”… Muitos dos fenómenos estranhos à compreensão dos simples mortais entravam no domínio de “coisa rõe” e se tornavam tema predilecto de tais conversas em família. Havia uma infinidade de usanças que eram sinal de satanás; práticas que deviam ser evitadas, pois a ele conduziam. Enfim, tempos de medos, em que o sétimo dos filhos devia ser baptizado com nomes de Eva ou Adão, arriscando os mesmos “correr o fado” se o não fossem, podendo até tornar-se lobisomens… Comer sentado na soleira da porta, e em especial quando tocassem as Santíssimas Trindades, dava azar, para não falar em passar por debaixo de uma escada aberta, quebrar um espelho ou verter azeite, encontrar gato preto, etc, etc…

Mas mais do que essas situações do quotidiano, outras, mais gravosas, tinham certamente mão do sobrenatural e com as quais não se podia brincar, ou até sorrir. Evocar almas do outro mundo, dar um pontapé num “defumadouro” que tinha sido lançado num cruzamento de caminhos ou junto a um cruzeiro era arriscadíssimo, pois o mal que se pretendia esconjurar recaía sobre quem por perto dele passasse e certamente em quem o tentasse destruir…

Dos cemitérios, nem era bom falar, pois o momento ficava toldado pela sombra espectral e medonha da gadanha da morte, eriçando os cabelos dos ouvintes! De evitar passar junto às suas paredes e, a partir do lusco-fusco, era recomendável rezar baixinho, ou se fosse mais afoito cantar a bom som de modo a espantar o mal que se podia instalar na mente. Por sítio mal iluminado e deserto de passantes à noite era aconselhado fazer esse percurso em companhia e nunca só. Por volta da meia noite lá vinham uns três ou quatro retardatários do clube, que fechava as portas após o encerramento da televisão, e que por detrás do cemitério conversavam exageradamente alto. Vindos da cripta onde a sessão de cinema acabava tarde, também se formava um pequeno grupo esganiçando cantorias de modo a enxotar as recentes imagens ameaçadoras que os filmes de terror passados às terças feiras, gravavam nas mentes dos espectadores…

Hoje, os tempos e muitas das pessoas mudaram e essas superstições são cada vez menos presentes. Só alguém em muito desespero é que busca mulheres e homens de virtude, oportunistas para aliviar os seus males. Em geral, as procuradas respostas às preocupações e interesses são mais racionais, ilustradas pela instrução mais evoluída do conhecimento nas pessoas do mundo actual. À volta do cemitério, a horas tardias podemos mesmo cruzar com senhoras no seu passeio higiénico, sozinhas, ou acompanhadas pelo seu animal de estimação, sem medo de se depararem, vindo do fundo sobrenatural, com algo ruim…

Pois, pois, mas como resquício de um velho ditado dos nuestros hermanos, apraz ter em conta que nosotros no creemos que haya brujas, pero que las hay, las hay!..

A ver quão arreigadas são as ideias, mais fortes do que o conhecimento, que é sempre provisório, de qualquer forma.

(Ortografia segundo o acordo ortográfico anterior a 1990)

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