Natal

Natal
– Margarida Rodrigues
Num momento de nostalgia, o meu pensamento remeteu-me para o Natal da minha infância. Lembro-me que era uma noite muito especial. Sentado a meu lado, num banco largo de madeira que havia sido aproveitado de um outro móvel velho e que eu considerava só meu, o meu gato Ruca partilhava comigo parte da comida, sob o olhar reprovador da minha mãe.
A ceia de Natal era servida na sala de jantar, e eu, sem qualquer hesitação, arrastava aquele que seria o meu assento durante muitos anos. De forma a ser mais confortável, a minha mãe tinha feito uma almofada longa, com tecido branco, que era o aproveitamento de um lençol já gasto pelo tempo. A almofada era feita em tecido dobrado, a fim de poder ser resistente, e cujas forras iam variando ao longo do ano, de acordo com a época festiva. Na Páscoa, a forra tinha um estampado com coelhos, ovos e fitas coloridas – todos os tecidos eram retalhos que a minha mãe comprava na feira, na Quinas, cuja banca ficava em frente à casa de comidas Curtinha, próximo da escola primária. Depois, até ao verão, passava para um tecido com flores rosa, azul e amarelo. Em setembro, e aí sim, a forra mudava de figura. Um tecido bem resistente e muito atrativo, cujo fundo com margaridas de vários tamanhos, com um olho amarelo e folhas miudinhas faziam as minhas delícias. E como setembro era o mês dos meus anos, esta forra com margaridas estampadas faziam adivinhar o meu aniversário, dia de enterrar as merendas, isto é, quando os trabalhadores faziam uma grande merenda a simbolizar todo o ato do final das colheitas. No dia do meu aniversário, com algumas amigas, rumava até um campo próximo de casa e ao lado do qual passava um riacho. De manta liteira debaixo de braço, as respetivas bonecas e um cesto com uma linda toalha bordada e com um farnel composto por coquinhos, pães de leite, maçãs e uma garrafa de limonada com copinhos de vinho do Porto. O que sobrava do farnel, e tal como os trabalhadores faziam com as merendas, era enterrado num buraco feito na terra, a simbolizar a abundância das colheitas, no fim do verão.
Assim que chegava o outono, a forra da almofada era diversa: o seu estampado outonal remetia-nos para o início de uma nova estação, com tonalidades diferentes e que se mantinha até ao dia 8 de dezembro. Aí sim. Nesse dia fazíamos o presépio que, antecipadamente, o meu pai fazia questão de irmos ao monte apanhar o musgo. A colocação das diversas figuras do presépio e a sua disposição surtia em mim como que um encantamento. As variadas jarras da casa eram enfeitadas com camélias maioritariamente brancas, e uma ou outra de cor rosa (a minha mãe não gostava muito de mistura de cores – parece uma fantochada – dizia ela). Ramos de pinheiro e azevinho compunham as jarras e davam um lindo efeito. Trocavam-se as mantas das camas, feitas à mão com duas agulhas e com o aproveitamento de lãs, trocava-se um ou outro quadro bordado com motivos natalícios, uma fita larga dourada a enfeitar as portas da cozinha e da sala de jantar. Mas o momento alto do dia era a mudança da forra da almofada do meu banco, um tecido de fazenda em xadrez escocês, vermelho, verde, preto e branco que contrastava com a cor cinza claro, debruado com duas espiguilhas, uma verde e outra vermelha, com um pompom feito de lã vermelho em cada um dos cantos, o que causava admiração nas visitas e amigas das raparigas lá de casa.
O meu pai fazia questão que esse ritual se mantivesse, apesar da minha mãe se queixar de que tinha mais que fazer do que satisfazer todas as nossas vontades.
No dia 8 de dezembro, na celebração do dia da mãe, íamos à missa, e o meu pai tinha por costume que a minha mãe fosse mimada por ele e por nós. Evidentemente que havia sempre um ou outro incidente, leite ou sopa entornada na roupa, que causava algum transtorno, mas que facilmente se resolvia, situações que o meu pai, rapidamente, transformava em compreensão e alegria, o que demonstrava o amor pela família.
O jantar era sopa, uma travessa de aletria com canela e meia dúzia de rabanadas, tudo preparado muito cedo, de modo a estar tudo ponto na hora devida. Sentada no meu lindo banco com o meu lindo gato, e como não há vela sem senão, eu ouvia logo um raspanete, pois com toda a naturalidade de uma criança, eu mexia continuamente nos pompons. A ameaça era grande: – Tu e esse gato até voam se desfazem os pompons, dizia a minha mãe, porque o Ruca entretinha-se a puxar os fios e a dormir uma soneca. O meu pai ria-se e, com toda a ternura, atalhava que no caso de isso acontecer se faziam uns novos. A minha mãe não achava muita piada a isso e dizia ao meu pai – pois, não és tu que tens de fazer os novos…
A ceia de Natal era composta por um caldo de couve galega com feijão branco e regado com azeite, seguido de batatas cozidas, pencas, grelos e o respetivo bacalhau, regado com o famoso molho fervido. Eu fingia que comia o rabo do bacalhau, e, disfarçadamente, tirava da boca para dar ao gato, molho fervido nem pensar, não gostava, tem um sabor muito esquisito. Aprende a gostar, diziam os mais velhos. Após a refeição principal, havia sempre as famosas tangerinas e as maçãs coradinhas da casa da tia Rosa, aletria, rabanadas, queijo, avelãs, bolo-rei e vinho do Porto. Éramos cinco, mas a casa ficava cheia. Habitualmente, chegava a tia Zira , irmã do meu pai, a mostrar o xaile novo feito pela cunhada Bina, por quem tinha um grande apreço.  Levantava-me imediatamente, e a tia Zira vinha sentar-se no meu banco comigo ao colo. Guardo desta tia e da tia Rosa as melhores memórias de carinho e ternura. Jogávamos ao raspa, ao burro e, entretanto, íamos para a  cama, eram horas de dormir. Nessa noite, eu estriava sempre um pijama lindo feito de flanela, bem quentinho, e as minhas irmãs uma camisa de dormir, também de flanela. As respetivas golas, forradas com um tecido macio branco eram debruadas com uma linda renda de guipure, com florinhas, uma branca, uma rosa, uma azul claro e uma amarela, às vezes com várias emendas visto que naquela altura quase nada era desperdiçado e tudo voltava a ter uma nova vida. No meu caso, as golas dos pijamas tinham dupla função, a beleza da peça em si, mas também usar por baixo das lindas camisolas em “dralon” que a minha mãe fazia e que quase sempre me picavam o pescoço. Na manhã do dia de Natal, eu saltava da cama cedo, ia até à cozinha com o Ruca atrás de mim, ver o presente que o Pai Natal tinha deixado. Uma camisola, umas luvas, um cachecol faziam sempre parte dos presentes e alguma coisa mais que eu desconhecia por completo. Retenho na memória, como se fosse hoje, em que estava no sapatinho uma caixa com um boneco de corda, unicamente vestido com uma fralda e que gatinhava. Nunca perdi a memória desse brinquedo. Nessa altura, o Ruca também tinha direito a um presente, uma batete em flanela com quadrados pequenos e azuis, brancos e rosa, debruada com uma fita azul. Passaram mais alguns natais e a grande mudança ocorreu aquando da morte do meu pai, 12 de dezembro, tinha eu 10 anos. Retive na memória essa noite de Natal em que as quatro fizemos um esforço para tornar essa noite menos triste. Passei a dormir com a minha mãe, e lembro- me do seu choro contido durante toda a noite. Também quero guardar como das melhores memórias a ida com o meu pai à baixa portuense visitar o irmão, eu vestida de casaco de fazenda azul escuro, com gola e punhos em tecido de veludo, chapéu mandado fazer na chapelaria Santo António, na Rua 31 de Janeiro, luvas vermelhas com riscas azul marinho nos punhos, botins vermelhos com uma dobra em azul e as meias até ao joelho com uma dobra larga azul marinho. A menina irrequieta, a quem o pai dava orgulhosamente a mão, e que entramos numa loja para comprar as meias até ao joelho amarelas e pretas com desenho “jacquard”, para a minha irmã Rosita, que iria combinar na perfeição com a camisola nova que iria receber no dia de Natal. Este segredo era só meu e do meu pai, pois era logo alertada – Ó Guidinha, não dizes nada. Seguíamos até à confeitaria Villares para levantar o bolo rei oferecido pela dona da fábrica, que tinha uma grande estimação pelo meu pai.
Ontem, durante a minha visita à baixa portuense, todas estas memórias me assolaram e fizeram-me reviver com nostalgia os tempos felizes da minha infância.

2 thoughts on “Natal”

  1. Quanta beleza nas saudades de um tempo que não volta, mas e por tal é memória e identidade nesta una, efémera e irrepetível existência.
    Parabéns!

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