Praia
– Margarida Rodrigues
Chapéu novo de palha com uma grande fita de cetim rosa, balde na mão, rumei
com a família até à praia na foz do Douro. Fomos passar o domingo com a tia
Rosa e os filhos, à praia da Luz. Não me lembro de muito mais, à exceção de,
na hora do lanche, a rapaziada mais velha, estar a lanchar percebes e a beber
cerveja. Provei e não gostei.
Anteriormente, íamos com a tia Rosa e filhos, até Gramido, zona da
Lavandeira. Tenho bem gravado na memória quando o meu primo Nélito
nadava no rio e eu gritava a pedir-lhe: por favor meu filho, sai da água. Ficava
mesmo aflita ver aquele rapagão a nadar como se não houvesse amanhã. No
ano seguinte, por altura da primavera, fui operada à garganta e ouvidos no
Hospital Maria Pia. Nesse mesmo ano, pela primeira vez, no dia 1 de julho,
rumamos até Valadares, para passarmos as férias grandes, dois meses e meio.
A minha mãe e duas irmãs mais novas (total de 11 irmãos) tinham filhos
aproximadamente da mesma idade, à exceção da minha irmã mais velha, que
na altura já estava a trabalhar. Um total de sete crianças, quatro raparigas e
três rapazes, com idades compreendidas entre os onze e os quatro anos. As
irmãs acharam por bem arrendar uma casa na praia e assim era bom para as
crianças beneficiarem dos bons ares e do iodo rico naquela zona de praias, e
evitar algumas maleitas durante o ano, pois acabavam por fazer dez semanas
de praia.
Organizaram-se de forma a ficarem cerca de três semanas cada. Os maridos
só ficavam aos fins de semana. A viagem apesar de relativamente curta, deu a
sensação de ser do outro lado do mundo. Dois carros supercarregados, oito
crianças, três mulheres e dois homens faziam parte deste cortejo. Era sexta-
feira depois do almoço, e, assim, durante sábado e domingo dava tempo de
organizar a nossa estadia. Eu fui no carro da minha tia Rosária, que trabalhava
como modista, e por isso foi necessário levar a máquina de costura para
trabalhar nas horas vagas. A máquina ia bem presa no tejadilho do carro,
amarrada com várias cordas para evitar acidentes. Eu gostava bastante dessa
tia, era nova, simpática, bem-humorada, e mãe de dois rapazes: o Zé Manel e
o Rui.
Lá vamos nós a caminho de Valadares, quando, em plena marginal do Douro,
começamos a ouvir carros a apitar. – Para Zé, para, gritou a tia. Saímos todos
do carro e qual não é o nosso espanto, quando vimos que as gavetas da
máquina de costura se tinham aberto, e que tesouras, fita métrica, dedais,
alfinetes, carrinhos de linhas estavam espalhados pela estrada. Risota e mais
risota. O tio Zé estava zangado, mas a tia começou logo a fazer piadas e a
dizer que se fosse a subir General Torres, nada se aproveitava. – Vamos
embora que ainda falta muito caminho e temos ainda muito que fazer.
Lembro-me perfeitamente da chegada à casa da “Susana”. Eram duas casas
clandestinas, feitas em cima das dunas. Na frente da rua principal e nas
traseiras, um muro feito de canas (planta característica das zonas arenosas de
rio e mar) deixava passar despercebido as construções clandestinas que
abundavam na zona. Da casa até à praia havia um pequeno carreiro com
ligeira inclinação e tínhamos a praia à nossa disposição que, por sua vez, era
pouco frequentada. Assim que cheguei, fui logo a correr para as dunas e
brinquei com búzios secos, conchas, chorões. À noite não conseguia
adormecer, tal era a excitação e o barulho do mar. As casas eram térreas e
pequenas, construídas em L, e no centro havia um tanque enorme e canteiros
com flores, mas predominavam os girassóis de diferentes variedades, bem
assim como enormes catos de aloé vera. Era a imagem de um jardim
encantado. Apesar da casa ser pequena, não houve problemas com a logística,
ou assim me lembro. O dia era passado praticamente na praia, por isso a casa
era para fazer as refeições e dormir. Havia um chuveiro no exterior com água
fria, que fazia as nossas delícias. Nada era complicado, e tudo era motivo de
algazarra. Não tinha tudo, mas também não sentia falta de nada.
Na primeira semana ficamos encostados a um enorme rochedo a que
chamávamos de nosso. No fim de semana seguinte, lá chegou o tio Zé com os
paus todos bem medidos, e, entretanto, a tia Rosária tinha costurado um tecido
grosso em formato de cabana, e assim era a nossa barraca e um saco enorme,
onde as tralhas eram guardadas ao fim do dia. Trezentos metros seria a
distância até a praia. Atenção que havia um horário a cumprir: das 9h às
12h30, 14h às 18h30. Lanche 11h e 16H30. A mãe responsável ia levar o
lanche composto por um pão com planta, marmelada, doce, só ao domingo
havia queijo e sempre uma peça de fruta quer de manhã quer à tarde e voltava
para casa para adiantar o serviço. Se tínhamos sede vínhamos rapidamente a
casa beber e voltávamos num pé só para a praia. Não me lembro sequer de ter
chovido. Saímos da praia às 16h30, pois tínhamos de tomar um bom banho
antes de ir à missa das 18h. Roupa lavada, lanche tomado, lá íamos assistir à
missa ao Sanatório, hoje centro de Reabilitação do Norte, a escassos metros
da casa. A missa era celebrada numa das enfermarias mais vazia. Sobre o
olhar ameaçador da nossa responsável, tínhamos de nos sentar bem quietos
numa cama disponível. Verdade seja dita, que pouco tempo durava a
mansidão. Dali a nada a cama começava a andar, o Zé Manel, sem que
ninguém se apercebesse, destravava as rodas e um ou outro adormecia em
cima da cama. – Se voltam a fazer isso, para o ano não há praia.
Em nove anos estivemos em três casas diferentes. Três anos na Susana,
quatro anos no Peixoto e dois anos na Miquinhas, mas todas elas sempre
muito próximo da praia. Os mais velhos eram responsáveis pela barraca e os
mais novos pelos baldes. Manhã e tarde o ritual era sempre o mesmo. Claro
que havia algumas discussões entre nós, ora por causa do peso, ora pela troca
dos baldes, mas as regras eram bem claras – Ou assim ou para o ano não
voltas. Chegados à praia, montar a barraca, pôr nívea da lata azul na cara e
nos ombros e aí começavam as nossas aventuras. Se a maré estava cheia,
passeávamos na areia molhada e não podíamos molhar os pés por causa da
digestão, apanhar conchas, beijinhos, penas de gaivotas, algas bem verdes,
construir castelos, muralhas, covas bem fundas, mas se a maré estava vaza
era logo a correr para as pocinhas para apanhar estrelas-do-mar, peixinhos,
mexilhões e só mais tarde, quando chegava a responsável, é que podíamos
tomar banho.
Era hora do lanche e todos sentados dentro da barraca para evitar acidentes
com a areia. Comíamos rapidamente e só depois é que íamos apanhar sol e
secar os fatos de banho. Chapéu na cabeça e novamente nívea, por lá
ficávamos até serem horas de voltar para casa. Horas e horas de praia, uma
felicidade única, um tempo que não volta, uma sensação de bem-estar, que
fazia querer voltar ao mesmo nos dias seguintes. Ainda hoje adoro ficar na
praia ao final do dia e sentir o calor mais enfraquecido a aquecer o corpo,
depois de um banho. Adoro a água das praias do Norte, que apesar de serem
mais frias, não me afetam em nada. Anos e anos o corpo habitua-se à
temperatura e ao ambiente. Não havia tempo ou espaço para queixumes,
estávamos na praia e isso era o mais importante.
Poucos anos depois e já mais crescidos e para “fazer horas” até poder tomar
banho, fazíamos uma caminhada pela areia até ao Senhor da Pedra em
Miramar. Duas horas era o tempo de viagem. Éramos responsáveis por nós
próprios e liberdade traz também responsabilidade. – Atenção, na Capela não
se aproximem demasiado no cimo das rochas (íamos sempre ver as marcas
nas rochas – patas de cavalo – segundo a lenda) e não mexam nas velas que
se queimam. Desde criança sempre me foi dito para não acreditar em
bruxarias, superstições, etc., etc., bem assim como – o lugar dos santos é na
igreja, a casa é para as pessoas, e por isso me tornei séptica em relação a
esses assuntos. Ouço, respeito, mas não teço comentários – Não tenho
conhecimento suficiente para falar sobre isso, digo eu, e assim evitar ferir
suscetibilidades.
Alegria, alegria, foi quando no primeiro ano, aquando da visita do meu pai e da
minha irmã mais velha recebo, uma boia amarela com desenhos lindos, uma
touca de borracha branca com borboletas em alto relevo e uns óculos de sol
amarelos, que evidentemente não duraram muito tempo. Roupas simples e
práticas, fatos de banho, chinelos de meter o dedo, chapéus um vestido melhor
e um par de sapatos, um casaquinho para os dias mais frios, faziam parte da
indumentária e não esquecer livros de banda desenhada (tio patinhas), era
tudo que se levava para aqueles meses de praia.
Íamos cedo para a cama, vencidos pelo cansaço, mas de manhã acordávamos
revigorados e prontos para enfrentar um novo dia. Em dias de nortada íamos
até ao pinhal, que ficava nas traseiras das casas e tínhamos autorização para
brincar na colónia da CP, apanhar pinhas. Passávamos por casas com muros
altos, sabíamos qual a casa do pintor Jaime Isidoro, do António Oliveira, do
engenheiro, do alemão de uma outra casa muito misteriosa de aspeto
semiabandonada e sobre a qual fazíamos os mais imaginários cenários
corríamos em grupo, a fugir do ar sinistro.
Nunca vimos lá ninguém. Um mistério que durante muitos anos nos preocupou.
Mais tarde descobri que morava lá uma senhora francesa que era pintora.
Mistério arrumado. Era uma zona de elite, que ligava Valadares à Madalena
com as raízes dos enormes plátanos e pinheiros a levantar os paralelos.
Quando o sanatório foi desativado, passamos a ir à missa a Francelos.
Gostávamos de ir pela avenida nas traseiras da Heliantia, clínica dos ossos
cujo diretor clínico, Dr. Henrique Maria Alves, deixava a clínica e passava por
nós e nos cumprimentava com várias apitadelas. Acenávamos e seguíamos
sem nunca deixar de parar na estação de comboios. Tudo nos era familiar. O
primo mais novo, Berto, um miúdo muito bonito, cabelo loiro, olhos verdes, mas
tinha sempre dor no “dente”. Do nada e em qualquer sítio era isto: – quero um
biscoito, dói-me o dente. Deste modo os biscoitos de Valongo (figuras variadas
de animais) faziam parte do nosso dia a dia, mas o Berto tinha a vantagem de
poder escolher a figura. Protestos, mas de nada adiantava. Doía-lhe o dente e
por isso… um saco de pano costurado para o efeito guardava lá dentro os
famosos biscoitos de Valongo comprados a granel.
Acontece que um sábado, e por ironia do destino, chegamos à capela com os
biscoitos todos partidos. Já lhe doía o dente e não era problema fácil de
resolver. Chorava tanto, ao ponto de irmos em conjunto falar na sacristia e
negociar umas hóstias não benzidas para aliviar a dor do dente. Infelizmente
deste grupo, já não estão entre nós a minha irmã Rosita e o Berto. Partiram
cedo, mas deixando saudades e principalmente boas recordações entre nós.
Em encontros de família, invariavelmente, falamos sempre destas memórias
que nos acompanham ao longo da vida. – Lembras-te quando… ou e daquela
vez que…E quando a tia deu connosco a … a máquina de costura…
Chegaram os anos das paixonetas, com os rapazes da praia, como dizíamos.
A Rosita e a prima Lina tiveram as suas paixões, das quais se seguiram um
casamento da Rosita e a Lina uma aventura com o “Zéquita”. A Rosita ficou a
viver na última casa da praia “ da Miquinhas” e por isso tivemos o privilégio de
a frequentar até à sua morte e que entretanto passou a ser a “casa da tia
Rosita”. Um autêntico paraíso florido para os meus filhos que também por lá
passaram grandes temporadas. Agora não quero lá passar. Dói-me ainda a
partida da minha irmã Rosa, que apesar de termos feitios muito diferentes,
gostávamos muito uma da outra. Perder uma irmã é muito doloroso.
Assim termino a saga pelas praias de Vila Nova de Gaia, agradecendo por
haver tão boas memórias que guardo no meu coração tão carinhosamente.
Memória prodigiosa hem ! Da irmã Rosa não sabia . Mas que belas memórias , infância feliz para recordar a vida toda.
Gostei
“rumamos até Valadares, para passarmos as férias grandes, dois meses e meio”
As memórias a ” fazer” a História de um tempo que não volta…
Muito bem, Margarida!
É isto a nossa gente! É favor, continuar.