Imagem: Etelvina S. Ferreira
Às vezes consigo ver-te na noite dos meus sonhos
– António Ferraz
Os sonhos não são mais do que pedacinhos da tua liberdade, dizias-me tu
deitada no meu ombro, despertos já do sono da manhã.
Eu ouvia-te e recontava outros sonhos sonhados de tantas noites, do vazio da
hora quando acordava, e da alegria de ver o teu corpo a dormir na penumbra
da noite.
Quantos sonhos, Maria Inês, quantos sonhos contados entre o teu riso e a
minha verdade de que cada um possuía uma certa predestinação com outra
vida passada, outros mundos para além do nosso, talvez mundos doutras
roupagens, mas inteiros e repetíveis, doutras idades, doutros séculos,
porventura, mas cada um com um sentido que eu queria fazer meu, nosso,
mundos de silêncio no evocar da hora da tua cabeça no meu ombro.
É tarde. A noite vagueia para lá das paredes da casa. Aqui, continua a
penumbra que sempre existiu na sombra das noites, de todas as noites.
Quando partiste, pensei que jamais me habituaria a esta solidão, este pasmar
surdo e inquieto de estar sozinho. Mas a vida dá-nos a mão, ensina-nos a
enfrentar o silêncio. Às vezes, acordado a meio da noite, pressinto e sinto o teu
riso, tão real que me parece ouvi-lo, tão real que me levanto e vou aos quartos
dos nossos filhos, agora vazios como eu, no engano de te ver, de estares lá
esquecida por qualquer partida que a morte nos tivesse feito.
Casaram, Maria Inês, um e outro já têm um filho. A Isabel uma menina,
parecida contigo, não nos olhos, o Bernardo um rapagão, lindo como o pai.
Vêm ver-me com regularidade, a Isabel mais vezes, sempre teve uma
inclinação e um carinho especial por mim, o Bernardo menos vezes, mas vai
telefonando, a vida dele, como sabes, sempre foi muito preenchida. Gosto de
os ter junto de mim quando cá vêm almoçar ou jantar, lembram-me a tua
presença, a tua graça, a tua forma simples de os amares como só tu sabias, as
margens do teu rio na estreita verdade da vida.
Às vezes, vou à Praça onde te beijei pela primeira vez, e consigo ver-te ainda
no teu vestido azul a condizer com os teus olhos, e ouço o teu riso de menina,
de ingenuidade adolescente, talvez de alegria, a tarde a escorrer pelas ruas da
cidade, gentes que passam continuamente em sussurros ininteligíveis, um
elétrico vagaroso, e o teu riso. O teu riso que recordo para além desse tempo,
no bulício da hora. É tarde. Agora consigo ouvir apenas o nada, aquele ruído
estranho e vivo que se deita connosco quando estamos sós. Este nada que
ouço ajuda-me a recordar-te, a sentir a tua mão na minha num aperto único, de
felicidade num tempo, de tristeza noutro tempo.
Não sei o que vês em mim, dizias-me, para me dedicares tantos poemas. Aliás,
como sabias que eu gostava de poesia?
Sabia, Maria Inês, porque os teus olhos brilharam quando te ofereci um livro de
Eugénio de Andrade, sem razão aparente, mas cheguei um dia junto de ti com
o livro. E tu aceitaste de imediato.
Gostas de Eugénio de Andrade?
Claro que gostava. Lia todos os poetas que o meu parco ordenado me
permitisse comprar, e escolhi entre os meus livros esse para te oferecer,
porque falava do amor, das raízes que o amor vai deixando nas pessoas, na
vida, para lá de tudo, de todos os matizes que o amor possa ter.
Conheço alguns poemas dele, continuaste, e admiro a maneira como ele
escreve, como ele consegue, em tão poucos versos, dizer tantas coisas num
único poema.
É verdade. A poesia eleva quem a escreve quem a lê, mesmo em pequenos
versos, respondi-te.
Dei-te a minha mão, que tu aceitaste. Foi como se outro mundo se abrisse para
mim. Eu já te tinha sonhado quando te conheci, talvez te tivesse visto a vender
roupa usada na Vandoma, com a tua prima, ou noutro tempo, sei lá, num
desses mundos imaginários que não sabemos explicar, mas que guardamos
como páginas de um livro. Por essa razão te falava tanto de sonhos, talvez, ou
então porque os teus olhos eram oceanos de luz, repetidamente sonhadores.
Nunca saberei explicar-te, porque nunca o soube, mesmo quando me
interrogavas nas horas mais felizes das nossas vidas. Agora ainda vejo os teus
olhos, guardei-os para os recordar nas noites mais vazias, para, quando estou
mais sozinho, poder fazer contigo a coruja, encostar o teu rosto ao meu e
olharmos bem nos olhos um do outro, lembras-te?
Os teus pais, especialmente o teu pai, não aceitaram muito bem a nossa
relação. Quando, uma noite ao jantar, contaste-me mais tarde, lhe disseste que
namoravas comigo, o teu pai pousou os talheres,
Já perdi o apetite,
E tu, no deslumbre dos teus dezassete anos,
Papá, é melhor comeres ou vais morrer à fome pois é com ele que irei casar.
Sempre foste persuasiva, mesmo com os nossos filhos, uma palavra tua era
uma ordem. Eu sempre me deixei guiar por ti, confesso, e gostava da maneira
como lidavas com as situações.
De uma forma ou de outra, sempre conseguimos que os nossos dias fossem
diferentes, dias abertos na vertigem dos sonhos.
Sinto-me cansado. Deveria recostar-me, talvez tomar um daqueles
comprimidos que o António me receitou para me fazer adormecer, mas não.
Não quero que vás já embora, quero ter-te ainda aqui, falar-te da minha vida,
não da tua. Continuo a ter sonhos, não aqueles sonhos da nossa adolescência,
mas os sonhos em que consigo ver-te, tocar-te, dizer-te a vida que corre como
um comboio em sentido contrário, uma praia no inverno, o vento como uma
carícia no teu rosto, a tua boca na sede de um verso, a nossa casa na primeira
noite, o nascimento dos nossos filhos, a leveza das tuas mãos no meu corpo, o
teu sorriso aberto como uma madrugada de verão, uma canção no despertar
da hora, um cigarro a dois.