– Teresa Silveira
“Dantes, os jornais mostravam-se para aliciar o transeunte a comprar um deles”, escreveu há tempos Miguel Esteves Cardoso.
Isso era dantes, no saudoso tempo em que os jornais se mostravam, vaidosos, a fazerem-se ao piso para ser comprados, cheiinhos de informação fresquinha ainda a cheirar à tinta fresca da gráfica de manhãzinha mal chegavam aos ardinas, aos quiosques ou às papelarias. Agora, ardinas já nem há, os quiosques desviaram-se da sua verdadeira missão e as papelarias vendem muito mais do que artigos em papel e de escritório.
Dantes, os jornais perduravam, expostos. Semanários como O Jornal ou O Independente mantinham-se nos escaparates dias a fio bem visíveis aos olhos de potenciais leitores ao longo da semana. Que os havia. Eu, que na adolescência não tinha acesso a jornais ao fim de semana na aldeia e a internet era ainda do domínio do desconhecido, só conseguia comprar estes semanários a meio da semana num quiosque de Amarante quando o horário das aulas me permitia ir apanhar o autocarro noutra paragem, junto ao Navarras. As publicações mensais ou anuais – O Seringador, por exemplo, que o meu pai comprava todos os anos na primeira semana de Janeiro e lia e revisitava todas as semanas para se orientar nas lides agrícolas – ficavam nos pontos de venda à vista todo o ano, amiúde amarelecidas pelo tempo, à espera da tardia curiosidade dos leitores. E havia leitores. Melhor, havia a expectativa de haver leitores.
Hoje, em muitos quiosques por esse Portugal – e há cada vez menos -, vou-me apercebendo que os escassos títulos semanários ou de publicação mensal que estão à venda ainda ficam uns dias à espera que uma alma curiosa os compre. Mas, quantas vezes dá dó ver os jornais sobrantes atados em lotes, prostrados, colados à tijoleira do chão a um canto à espera do dia e hora da fatídica devolução.
Portugal tem cada vez menos leitores de jornais, menos ainda de jornais em papel e muito menos leitores dispostos a pagar pela informação.
Embora seja amplamente assumido que o exercício do jornalismo, mormente o de investigação, é decisivo para a qualidade da nossa democracia e representação política e para a formação de públicos esclarecidos, críticos e exigentes e, apesar de o Presidente da República de Portugal estar preocupado com a simplificação e a falsidade da informação que navega nas redes sociais e com as dificuldades financeiras dos meios de comunicação e a precariedade da profissão de jornalista, nada muda. Os anos voam, legislatura atrás de legislatura, e não vejo os poderes políticos tomarem medidas estruturantes, até fiscais, tendentes a minorar este declínio.
Também em consequência desta míngua, muitos quiosques quase têm vergonha de vender jornais. Os jornais estorvam, sujam as mãos e os escaparates, não têm grande saída, a sua venda não rende dinheiro, logo os lojistas quase os escondem, priorizando a exposição de produtos com mais procura e margem de lucro.
Há ilustres e honrosas excepções no mundo dos quiosques, claro. E, tratando-se da venda de jornais estrangeiros, a coisa até muda levemente de figura nas cidades e ruas onde há mais concentração de turistas. O quiosque no largo ao pé do Café Martinho da Arcada, em Lisboa, é um exemplo. E os localizados nas transversais da Rua Augusta, idem. Oferecem aos passantes uma panóplia de títulos de jornais diários e semanários e revistas especializadas em vários domínios (arquitectura, moda, design, automóvel e outras) como poucos. Nacionais e estrangeiros. Quem fique por ali a apreciar uns vinte ou trinta minutos percebe a afluência dos curiosos, sobretudo internacionais, sozinhos ou em grupo, que buscam avidamente informação e leem, mesmo quando estão de férias e a milhares de quilómetros da geografia de origem.
Há dias, no Porto, descia eu a pé a rua 31 de Janeiro a lamentar os tantos prédios e lojas desocupados e até esventrados onde outrora se fez farto comércio livreiro, bancário e outro, e, já a chegar cá abaixo a S. Bento, apesar de a via estar interdita a automóveis devido à empreitada de construção da nova estação de metro da linha Rosa, um grupo de pessoas concentrava-se à entrada de um quiosque.
Jornais havia, sim, uns do dia e outros do fim de semana. Mais de uma dezena de títulos, contei eu, uns nos expositores à direita e à esquerda da porta e, dentro, num outro escaparate metálico que até se via do passeio.
Os títulos à vista eram todos internacionais. Estranhei, mas entranhei. A centenária estação ferroviária de S. Bento do arquitecto José Marques da Silva ali ao lado é um chamariz de turistas e de passageiros de múltiplas origens. E a procura pelas novidades, ao que vi, é muita, tal a ostentação dos jornais estrangeiros a mostrarem-se, vaidosos, aos transeuntes. Espanha, Reino Unido, Alemanha, França, Itália… havia mais do que um jornal de cada país, generalistas, económicos e desportivos.
Jornais portugueses ali é que nem vê-los. Corrijo. Havia, mas não à vista desarmada. Quem os quisesse comprar ou apenas folhear tinha de entrar no espaço exíguo, perguntar por eles e descortiná-los ao fundo, assim como quem procura uma agulha num palheiro.
Muitos dos quiosques, nas grandes e pequenas cidades e até nos centros comerciais, vendem tudo e um par de botas, ostentam múltiplos artigos, dentro, à porta e na montra da loja: tabaco (até ser publicada a nova lei que o proíba), cigarros electrónicos, cachimbos, isqueiros, bugigangas, guarda-chuvas, corta-unhas, sacos e sacolas, batons do cieiro, lenços de papel, carteiras para dinheiro e para cartões eletrónicos, jogos de fortuna e azar, baralhos de cartas, postais, canetas, gelados, etc, etc, etc, mas, quantas vezes, jornais, em particular jornais portugueses, quando os há, jazem a um canto, como refugo.
No velho e exíguo quiosque que fica ao lado da livraria Latina, no início da rua Santa Catarina e a escassos metros da praça da Batalha, sempre que lá passo reparo, com tristeza, num letreiro no escaparate: “Jornais no interior”. No interior? Os jornais não estão à vista porquê, se aquilo é um quiosque e se as lotarias e raspadinhas – e até peças de roupa – nos entram pelos olhos dentro?
Há quiosques e quiosques, já o disse, mas muitos, quem lá se desloque sem a intenção de adquirir jornais portugueses, dificilmente leva de lá algum, de tão invisíveis e inacessíveis que estão aos olhos dos clientes. O povo bem diz: olhos que não veem, não comem. E os jornais não falam. Quer dizer, falam, falam muito e audível. Mas é lá dentro, no meio dos caracteres. Do papel em que são impressos não brota o som de uma única palavra.
Por vezes dá-se o surreal. Nalguns quiosques, os jornais estão virados ao contrário, com a contracapa para cima. Ou, então, com o cabeçalho virado para trás e as letras ao contrário, a desincentivar a visualização da capa e dos destaques. Quem queira ler e tomar uma decisão de compra, tem de se dar ao trabalho de por o jornal às direitas. Onde é que já se viu tamanho desmazelo com um artigo de luxo? Alguma vez uma peça da Prada ou da Ermenegildo Zegna estaria exposta do avesso?
Certos donos de quiosques e alguns funcionários mais submissos têm um medo terrível que as pessoas vejam as capas dos jornais e que, ávidas de notícias, folheiem, leiam o que lhes interessa e depois já não comprem. Por isso, pensam eles, mais vale ocultá-los dos olhos dos leitores que, assim, já não leem de graça. Era o que faltava, lerem de graça. Se é por causa disso, metam-nos em sacos de plástico, selados, como nos supermercados.
Mesmo sendo assinante e lendo online alguns jornais e revistas, compro alguns em papel. Já me aconteceu ir comprar o PÚBLICO num dia de semana ao fim da tarde à loja do posto de combustíveis a uns quinhentos metros da minha casa e não ver nenhum exemplar exposto.
– “Já não tem o PÚBLICO de hoje?”, perguntei um certo dia.
– “Ah… já recolhi as sobras para devolução”, ouvi, incrédula, do lado de lá do balcão, questionando de imediato a esmerada funcionária, se, às cinco da tarde, já era hora de devolver jornais e se não quereria fazer negócio até à hora de fechar. Também recolherá as raspadinhas às cinco da tarde de cada dia?, questionei-me, sem lho perguntar, embora até merecesse ouvir a comparação.
Ou estará a senhora mais interessada em vender desportivos e tabloides?, interroguei-me ainda. É que o Correio da Manhã, a Bola e o Record, esses, estavam bem visíveis no escaparate. E a Caras e a Nova Gente, claro, ali a entrar pelos olhos dentro. Do Novo Semanário e do Jornal de Notícias havia uns quantos exemplares em lote e, no chão, encostados do lado de dentro do terminal multibanco, uns sacos com o Expresso. Jornais estrangeiros não vi, só mexericos sobre (des)amores, traições, férias e divórcios de famosos.
Mexericos dos famosos é que dão margem. Os quiosques vivem de margens, também da venda de jornais, apesar até de haver quem lhas queira cortar, como uma certa empresa de distribuição de jornais e revistas em Portugal que se preparava para cobrar uma taxa diária de 1,5 euros aos agentes que comercializam imprensa escrita. Coisas do domínio do surreal, que a pandemia nos trouxe e que até levaram a boicotes na venda de periódicos.
Teresa Silveira nasceu em França, tem alma Amarantina e vive no Porto Tirou um bacharelato em Línguas e Secretariado no ISCAP, uma pós-graduação em Direito de Trabalho na Universidade Católica e um MBA no ISAG. É jornalista profissional há 25 anos. Colaborou em “Jornal da Terra”, o jornal regional de Amarante, em “A Página de Educação” do Sindicato dos Professores do Norte, no jornal “Vida Económica” e no “Jornal de Negócios”. Atualmente colabora com o “Jornal Público” e com o semanário ”Vida Económica”, onde, neste último, criou o suplemento mensal “Agro – Vida”. Há cinco anos foi desafiada pela “Antena 1” para uma parceria com o programa “Portugal em Direto” onde, mensalmente, vai debater, em direto, com um convidado, um tema ligado à agricultura e alimentação.